segunda-feira, 13 de setembro de 2010

na verdade (ou o que tem de ser dito)


antes de qualquer outra a primeira coisa que lhe pediu foi. fica à vontade. como quiseres da maneira que te apetecer. ela recolheu a almofada e sobre o tapete encostou-se. ele acendeu umas velas e apagou todas as outras luzes. do corredor à sala. da cozinha até ao quarto. ela tinha acedido ao pedido dele e acostumada a estar ao seu gosto assim permaneceu. ao lusco-fusco. toda a silhueta dela reflectia as luas de recortes finíssimos que ambos reconheciam como plenas. já que aquela manifestação da natureza era para eles a expressão concretizada de silêncios cheios de afeição. da janela aberta tinham o mundo em vista. e com ela a visão do que com dedicação e bondade haviam erguido até ali. nesse instante. ela que até se esquecera do cigarro no cinzeiro e ele sem se aperceber que fizera o mesmo. com os corpos fixos num único movimento tocaram-se. com o impacto dos dedos. na força táctil das mãos. olha para dentro de mim. pediu-lhe. olha-me nos olhos. assim o fez. ela abriu-se de verdes tons e as suas pupilas ficaram maiores. respirou fundo e agarrou-lhe o rosto. ele tinha tanta emoção no lado inverso das pálpebras e quase chorou. não antes de qualquer outra a primeira coisa que ela lhe disse foi. são essas estrelas que trazes contigo que me fazem adormecer completa todos os dias. ele pestanejou. com ela ainda afirmando. e se é isto o que tanta gente procura aquilo que vejo é a sorte de nos termos já encontrado. e pestanejou ela de seguida lançando-se para o seu abraço. vencida de cansaço e convencida do seu a m o r.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

na cidade (ou a volta ao começo)



é este barulho. são estes sons. e mais os ruídos. diz-lhe. ela fica atenta. motores e fumo. são as nuvens. o ar abafado e cinzento. das sombras. diz-lhe. e se ela responde brasa ele afirma lume. e se ela pensa fogo ele reacende a chama. se ele escreve. isso ela já sabe. agora é à tua maneira. diz-lhe ele. a ela na cidade deles. é este o momento. são estas ruas. à espera de nenhum silêncio. com duas vozes para acrescentar. é esta a visão da beleza. cara a cara diz-lhe ele. no sentido m a r g i n a l.


fotografia (ou a imagem que vem do a.mar)



uma viagem azul. de ida e volta sob um mar de anémonas. o fundo na superfície da transparência. o mergulho circular da íris no lugar órfão do sol tardio da tarde. mais ela no pensamento que ele tem. que ele agita. em pequenas ondas que se vão formando. trazem-na na proa e na popa do barco. no cais e no porto. na tardia tarde do sol ao pôr-se. ele com ela junto aos pés por atacadores. a apertar cada passo. enlaçando cada direcção. a direito de sentir a saudade em carne e osso. no fundo da superfície transparente. sem nunca ser superficial. há um regresso. a terra misturada dos jardins suspensos. dos tons verdes consolados pelos lugares comuns. em que ela por magia é inegavelmente a outra parte a completar-lhe o próprio rosto.


quarta-feira, 1 de setembro de 2010

s e m p r e (ou a eternidade)



a folha que se despe. uns dias antecedidos. ele pensou. a carvão podem-se apagar em agonia lenta. por isso é que as escreve a tinta. de súbito. letras maiúsculas de letras minúsculas. dela. para ela. a lebre. a febre. com uma ideia atravessada. um som muito comprido. e o estalar dos dedos. bebe duas doses de café. vinte e poucos graus na rua. manhã como há muito não acontecia. pára. pensa um pouco mais. nisto um autocarro com meia dúzia de estranhos abranda no sinal vermelho. depois desaparece. ele retoma. a partir de um ponto. um outro ponto. de encontro de chegada. dois pontos: continua. a inspiração evidente dos seus olhos. parado frente a um vidro fosco. para vê-la. para lá de uma massa baça. que não é de nevoeiro mas do cigarro que fuma. a nicotina espalha-se e desvanece-se. ela não. pois que venha o que vier sem esperar o que quer que seja. a não ser ela. na primeira duração de sete dias e sete noites. se ela soubesse. se ele sonhasse. sem interromper o sonho que ele dorme depois dela adormecer. maravilhosamente doce. dócil. a falar baixinho o que a paixão quer dizer. a única razão de haver e existir. ele deixa de pensar. ela já dorme. e tem assim a consciente certeza que consistentemente insiste em guardar. dela junto a ela. para a abrir quando acordar.


quinta-feira, 29 de julho de 2010

outra vez (ou uma vez mais)



as mãos dele. muito limpas. com que prepara a tinta. respira fundo. e olha para o mundo. ela tem cabelos escuros. fios soltos nas pontas. e um gancho que lhe prende a franja. as pálpebras tremem. as pestanas ficam imóveis. um segundo primeiro. um minuto depois. a atenção dele vai para a atenção que ela merece. por detrás dos óculos ele não lhe revela o seu próprio retrato. ela pergunta-lhe se falta muito. ele deixa cair uma mancha de óleo. e diz-lhe que é só o tempo de secar. ela recorda-se. ele relembra. aquele primeiro beijo. com os lábios a secarem também na face. desse beijo líquido e inteiro. o sal lívido no rosto. e agora pergunta-lhe ela. quase. ele levanta-se. entorna água nas suas mãos. muito limpas. tira os óculos. e pergunta-lhe se está pronta. ela responde que sim. um segundo. sim. um minuto depois. estão os dois no sítio exacto. mas surpreendentemente na tela não se vê nada. porquê. não importa. não se vê nada. mas está tudo bem. porque ambos sabem que está lá tudo. dele e dela também.

domingo, 25 de julho de 2010

intervalo (ou a manhã a tarde e a noite)



ao fundo. ele encostado a um muro. e ela num velho baloiço. há crianças que brincam próximas a eles. sem que nenhum deles se sinta incomodado. sem que nenhum se desvie do que faz. ela elevando-se na atmosfera. dócil como uma nuvem rosa num dia ténue. ele sustido num olhar de descoberta e fixação. como uma gota pesada que cai em círculos. ela não percebe. ele não entende. do mundo à volta sempre mais ambíguo do que os próprias acções. por isso ela balouça no ar. por isso ele olha para ela e detém-se. em liberdade. uma rapariga desliza num escorrega. um rapaz traz uma bola nas mãos. ela abranda. ele assume outra posição. ambos parados.com o tempo a correr entre eles. à velocidade de um sopro. o sol. o pólen e um avião que bate asas na distracção deles. ela levanta-se e prepara-se para ir embora. ele pressente que cada momento que foge traz outro momento consigo. mas não necessariamente assim. ou por esta ordem. ele está mais perto que nunca. ela menos longe do que alguma vez esteve de alguém. cruzam-se à saída. quando. o pó se transforma em areia. deitam-se lado a lado e com eles o céu. de azul para laranja. de roxo para lilás. para um verde invisível. de um claro que ofusca para uma brancura improvável. na cegueira que são estrelas. e com elas o reflexo de um jardim. que mais ninguém vê. que mais ninguém repara. é então que o mar desce pestanejante. e de cabeças voltadas um para o outro. quem. alguém diz. gosto de ti.


quinta-feira, 15 de julho de 2010

fogo e água (ou ao mesmo tempo um pretérito perfeito)



à volta deles um rasto de. os vestígios de. cartas amachucadas num canteiro de rosas numa mala vazia. e pouca luz. apenas as palavras. apenas os sentimentos sobrevivem. apenas a vontade de gritar. a vontade de repetir. apenas. a giz ela desenha no chão oco. sob labaredas de roupas e papéis. ele não ri nas partes cómicas. ela não chora nas mais sérias. nem alto nem baixo. só para não incomodar. só para não quebrar o momento. só para nenhum deles partir. para que sem os estilhaços do vidro possam brindar com o copo cheio. a transbordar. só para não se perderem a meio. apenas. ela na luz. ele na sombra. um som de violino a entrar pelos poros. finíssimos. experimentais. eles agora estão de costas. ela para ninguém. ele também. a sua pele é branca. o vestido é negro. ela veste-o até à cintura. respira com pulmões de fumo. um fumo não tão branco como o da sua pele. e debruça-se. para ele. o mundo está concentrado ali. naquele lugar de mundo. não importa a latitude a que ela se move. não importa a longitude em que ele improvisa. à volta deles uma dança de. os sinais de. rosas embrulhadas em cartas numa mala aberta. como uma caixa de música. em que ela é a bailarina. em que ele é o único espectador. até não restar qualquer nota. até que a sala se esvazie. ela dança. apenas o espanto. apenas a vontade em sigilo. apenas as palavras incandescentes. apenas a emergência de um grito. com afecto. e sentimentos bem vivos. ao centro na claridade. ela dança. ela rodopia. sobre ele. quando é servida a poesia. ele fala-lhe. quando ela deixa de dançar e fica perto dele. ele fala-lhe. a rima pousa-lhe no colo. ele fala-lhe. por tudo e por nada. ela ouve-o. fala comigo. ele fala-lhe. o pano cai de. cansaço. ela ouve-o. e deixa-se ficar em silêncio nos seus braços.

sábado, 10 de julho de 2010

m e l o d i a (ou o nome dos dias)



os dois lugares ficam ocupados de repente. ela senta-se no doze. ele no dez. sussurram um com o outro. murmuram baixo a par e par. enquanto a multidão se acomoda. enquanto o barulho se vai perdendo devagarinho. ela tem uma atenção exigente fora de si. já ele uma emoção que transborda até aos olhos. feliz é a lágrima que cai pelo rosto sem pedir licença. e sem disfarce. o pano sobe. e a coreografia de luzes rompe através das pálpebras. um piano. um acordeão. uma harpa. a dança dos dedos. o lirismo das mãos. às vezes ele desvia o rosto para ela. mas que ela não se apercebe. noutras vezes é ela que o observa de relance. sem que ele se dê conta. cruzam-se na matéria entre o som e a harmonia. mas é sempre melhor quando coincidem um com o outro. quando isso acontece que é quase constante. no antes e no durante. para depois. recomeçar. acrescentando pedras. a solo.


quinta-feira, 8 de julho de 2010

segredo (ou confissão)



entre portas. a noite é um luar perfeito desenhado nas frestas da madeira. ao longe sabe-se que há uma árvore. onde outrora existiu um poço. e onde muito antes disso havia uma fonte. só a árvore permanece. com cerejas nos ramos. e nas folhas o verde primaveril o amarelo outonal e uma brisa morna sacudindo raízes. agarradas ao chão. entre portas. a porta da esquerda. a porta da direita. uma delas abre-se primeiro. sai de lá uma voz. hoje vou agarrar em ti e levar-te comigo num sonho. encostada à ombreira da segunda porta que se abre depois. uma outra voz. mais delicada e mais doce. como o fruto que amadurece na boca. como o gosto que fica no sabor dos lábios. sabes a que nos leva esse sonho. nem onde nem porquê. sem motivo. as duas vozes em diálogo. em uníssono. amanhã e sempre. porque se no início era o verbo. agora o início é não verbal. é uma imagem de olhos a olhar noutros olhos. são dois pares de estrelas cadentes. o fogo é isto. uma certeza a atear tudo em volta. imprevisível. tens a certeza. numa das vozes. tenho. na outra. deslocam-se assim em direcção à árvore. que já foi poço e outrora fonte. a risca cinzenta esbate-se à medida que avançam. as portas ficam abertas. a noite continua perfeita. e o luar permanece. com o som invisível de uma chave pendurada no coração. a embalar os corpos. finalmente pelo mesmo caminho. felizmente. tic tac.


domingo, 4 de julho de 2010

cumplicidade (ou as pétalas de um bem-me-quer)



uma sala às escuras. estão sentados frente a frente. ela de olhos abertos sem ver nada. porque inicialmente a novidade recebe-os com um véu negro. ele vai falando no escuro para que ela o consiga ouvir. não sabem as horas nem quanto tempo passa. há duas mãos. uma desce devagar pelo rosto nos contornos da testa nariz e boca até ao queixo. a outra voltada para cima em que o tacto desenha uma matéria com sentido. consentido. a audição são reacções soltas. o olfacto é uma mistura de sabores invisíveis. o paladar é um brinde no tilintar dos copos. a visão é feita de apalpadelas. procura e encontro. pequenos movimentos em ínfimos gestos. como se o mundo fosse um duradouro eclipse em pano de fundo. não sabem quanto tempo passou. as horas sucedem-se uma às outras. estão agora novamente sentados. sobre um tapete à luz das velas. olham-se nos olhos. contam os passos até ficarem à distância de uma só palavra. ela segreda-lhe ao ouvido o lado lunar de um sonho. e tem os olhos fechados. ele acaricia-lhe secretamente uma parte do corpo em sinal daquilo que é real. e tem na verdade um brilho intenso. diz-lhe que tem a vida que sempre sonhou. com ela. com os braços à volta dele abraçam-se com força. e nesse momento a magia está em sentir tudo. que é tanto.


domingo, 20 de junho de 2010

toque (ou a sensibilidade na ponta dos dedos)



o nome começa a piscar. no visor uma tonalidade que vibra. um som que se rasga. um suspiro intenso. nenhum dos dois sabe exactamente o que dizer. ouvem as suas vozes diluindo pequenas afirmações. coisas que dizem o que é preciso. mal posso esperar. diz ela. para suprimimos esta nossa ausência. desabafa ele. riem os dois. como estás. pergunta-lhe ele. estou com falta de ti. responde-lhe ela. e durante alguns minutos vão trocando certezas do que os une. a ela esgota-se a força. a ele a resistência enfraquece. nenhum dos dois suportará mais do que necessário. em demasia em excesso. são água e fogo sob brasas. em combustão minuciosa e evidente. tocam-se sem medo. e mesmo no fim da chamada nenhum dos dois se questionará porquê. não têm duvidas. que a vingança será quente. ardente. exacto. o quê. o apego tem destas coisas. o colo onde um deita no outro a cabeça para poder enfim sorrir. de volta à vida. de felicidade. ou tudo o que ela tem de melhor.


sexta-feira, 18 de junho de 2010

penumbra (ou o ocaso latente)



as horas escurecem. e essa mulher está no limite. quase não come. pouco ou nada descansa. a paciência tem dessas coisas. é impaciente. e não dá espaço nem tempo para mais nada. por vezes dirige-se até ao parapeito. senta-se e acende um cigarro. enquanto as horas escurecem mais ainda. ela fuma à pressa. as suas mãos falam igualmente apressadas. essa mulher está presa consigo mesma. afligida e preocupada. grita. e cala-se de seguida. o que ela não sabe é quando aquilo irá acabar. e nem se recorda já quando é que aquilo começou. por muito que pense. quer apenas dar a angústia por terminada. para poder enfim suspirar de alívio. enquanto as horas escurecem por completo há numa casa distante um homem que aguarda. até que ela retome o seu brilho natural. livre e espontânea. para ele não existe senão uma sombra. a tocar-lhe ao de leve. desde o ombro até às costas. rise and shine. era assim que. mas. entre tanto. inevitável. a madrugada. de tão cerrada. rise. de tão negra. and shine. com os corpos encolhidos sobre todo o seu esqueleto.


quinta-feira, 17 de junho de 2010

com paixão (ou a desejada saudade)



tinha insónias. o homem que não dormia em noites de lua cheia. ficava escondido por detrás de uma janela a olhar para a rua já deserta. aquela hora tudo está coberto profundamente de uma cidade esquecida. apenas as insónias permanentes. e esse homem. sozinho. e mudo. desde criança. que em vez de falar decide escrever. porque não pode falar ele escreve. Por baixo das roupas que usa tem um corpo cansado. Para lá da calma que aparenta sente-se intranquilo por dentro. por dentro dos seus pequenos gestos vive a mesma ansiedade. que ela o venha buscar. que ela o venha ver nem que seja por breves instantes. porque qualquer momento breve com ela vale mais do tudo o que a boca guardou em silêncio. dispersa-se um bocado quando as lembranças escorrem pela caneta que tem presa ao coração. volta ao normal. fica exausto. dobra o pedaço de papel. e num gesto súbito levanta-se. veste um agasalho para não ter frio. desce as escadas. cá em baixo na berma da estrada pontapeia uma garrafa que se parte na margem oposta a si. há um vento que faz barulho. não importa. é no contorno das pálpebras que ele sabe que é através dela que tudo conhece sobre a ternura e sobre o afecto. tem insónias. mas torna a ser humano outra vez. o sono é o que levará até ela. e aí sim. ele dormirá.


segunda-feira, 7 de junho de 2010

acaso (ou consequência)



havia sempre aquele lugar. ela galgando passos como se corresse. ele abrandando o corpo à sua passagem e já quase parado. todos os dias era assim. ela na sua pressa habitual em que desaparecia. ele sujeito ao esvoaçar dos cabelos dela onde durante breves segundos não existia outro tempo nenhum. nunca antes lhe vira o rosto. os olhos a boca ou o sinal que ela tinha na testa. apenas lhe conhecia o cabelo voando ante si mesmo. sem que ela o soubesse ele gostava desse ritual. mas houve uma vez em que ela não apareceu. ele pensou se teria chegado atrasado ou se seria ela a ter-se demorado. por todos os motivos ou sem razão alguma. esperou contando pelos dedos a incógnita. e por um momento sentiu-se desesperado. como se nada batesse certo. nem ele a poderia procurar. nem ela saberia que ele a queria encontrar. passaram-se umas semanas sem que ele tivesse mais ido à aquele lugar. reinventou caminhos mas mesmo assim pensava nela. era na falta dos seus cabelos que sentia a falta dela também. talvez hajam na vida miragens irrepetíveis. sonhava alto. e todas as manhãs ele desejava voltar a pisar o chão onde ela costumava passar rápida mas admiravelmente. uma certa manhã ele seguia na ausência dela. cabisbaixo. adiante um alarido. então deu conta de um conjunto de pessoas fazendo uma agitada roda. aproximou-se. e viu-a caída. ela torcera o pé e perdera os sentidos. alguém contou. à ida ou à chegada ninguém sabia. como que esquecendo-se de tudo o resto ele aproximou-se um pouco mais. quando ficou perto o suficiente ela começou a abrir os olhos. reconheceu-o à primeira vista e não disse nada. ele levantou-a devagar. também sem palavras. porque é perante o lado bom das pequenas coisas que está a maior beleza que as tornam únicas. o destino é para quem acredita. assim. deram as mãos perante o espanto dos presentes. e partiram passo a passo.



quinta-feira, 20 de maio de 2010

Adagio presente (ou o allegro ausente)


os dias têm a textura das suas cordas. a vibração sobre cada nota. e são tons maiores e menores. na pauta extasiando-se sobre si mesma. seja de conforto de náusea até de lembrança. às vezes parece esquecer-se. para não lembrar. mas é puro o disfarce a quem sempre regressa. emergente. na urgência porém. um ponto de pequenos círculos. com o polegar fixo. o braço solto. a harmonia dos dedos num cuidadoso abraço sobre ela. durante um intervalo sem duração. nem tempo. ele fecha-se nesse som percutido em dó. porque tudo começa do início. há também ré mi sustenidos num abafar de fá e de sol. ou lá si em timbres abertos e outra vez dó. porque tudo termina perto do fim. devagar. ele toca. o acorde morrendo-lhe através do eco. antes e depois de preenchido o vazio entre dois actos. de olhos fechados é quase f e l i z. nos dias que por ele passam devolvendo-lhe a forma como vive. o que foi e aquilo que viveu. pára por momentos. ressente-se. depois repete o ciclo. pois que há amores que duram uma idade inteira. enquanto ele pousa ao longe os pequenos preciosismos do que vê. pois que existem paixões assim. de tão grandes e desmedidas. afina os pormenores últimos da imagem que carrega nesse solfejo interior. todos os dias. faz uma breve pausa. respira. e sozinho recomeça a tocar.


domingo, 9 de maio de 2010

relâmpago (ou a sombra branca do amor)



um homem e uma mulher. um sofá e uma cadeira. ele está deitado enquanto ela se vai baloiçando num compasso crescente. trocam olhares. mas nem ele nem ela se vêem. trocam palavras. mas nem um nem outro conseguem manter a conversa. não trocam gestos. e nenhum dos dois se consegue tocar. porque a distância é aquilo que lhes sobra da solidão dos corpos. às vezes trocam de lugares. ele sentado e imóvel. ela deitada e distante. porque o horizonte é apenas uma imagem só ao alcance da distância que os mantém ali. por que razão. é longa a busca de um que procura através do outro o que os dois não encontram. ouvem-se perguntas. e ecoam-se dúvidas. falham as certezas. vence o silêncio. e as réplicas latentes do desgaste. do fracasso. são voltas e voltas. de volta ao começo. ele procura a chave. ela não encontra saída. ou vice-versa. estão ambos perdidos. às cegas. mais tarde ou mais cedo um deles cairá. entre tanto. há um pano que flutua até ao chão. com ela. e luzes que se apagam. com ele. na sala de estar o sofá vazio e a cadeira esquecida. enquanto a noite lhes devolve as violentas colisões do pensamento. agora uma cama num espaço fechado. e duas cabeças naufragadas. um homem e uma mulher acordados. até que um deles cai à beira da cama. um segura e agarra a mão do outro. é noite escura. entretanto. sem pensar agora por que razão. num sonho. de tão cansados adormecem. ele vira-se para o lado dela. ela respira como se sorrisse. de mãos dadas contam o tempo pela soma de todas as verdades e não para tornar mais verdadeiro o que às vezes já é demasiado real. a meio do sono reencontram-se. ao irromper do crepúsculo perderão o medo. sem mais nada. a dois. para sempre.


quinta-feira, 29 de abril de 2010

trilogia da sobrevivência (ou a salvação)



ouro prata e cobre. três graus negativos. numa qualquer cidade. três indivíduos frente a frente. estão parados exemplarmente à volta de uma mesa redonda. em ambiente nocturno de um bar. e bebem o mesmo. usam óculos escuros. não se confrontam. para além dos copos três envelopes brancos. no fundo contraste uma disposição cuidada sobre a mesa. o reflexo de um selo branco. três homens frente a frente uns com os outros. sem confrontos entre si. bebem devagar. e nunca dirão que estiveram ali. de relance um deles afasta-se primeiro. leva um envelope consigo. dos outros dois apenas um aparenta mais resignação e tolerância. até que o outro se levante também com o seu envelope por abrir. ouro. a regra do silêncio. prata. só depois daquela porta eles poderão saber o que os espera. o que fazer. o que tem de ser feito. a curto prazo. bronze. não há volta a dar. nem possibilidade de recuar. o terceiro homem aguarda que os outros se vão embora. dá o último gole num gesto único. Abre o envelope. fecha-o. depois é cada um pelo seu caminho. sem remorsos. ouro prata bronze. só um deles permanecerá vivo depois de tudo. a roleta russa. qual deles o gatilho qual deles a bala qual deles o disparo. Só um ficará são e salvo.


segunda-feira, 26 de abril de 2010

o lado de lá do laço (ou dois tons para a mesma cor)



um dia a meio da noite um sobressalto. quando ela começou a enjoar. quando dificilmente se mantinha de pé. quando ela tremia dos pés à cabeça. quando já desconfiava. quando aconteceu. quando ela terminou com a dúvida. quando já sabia. quando ela sempre soube. quando tinha a certeza. quando ela teve que fazer tudo sozinha. a incógnita do teste. o resultado do exame. quando decidiu não contar a quem quer que fosse. quando ela gritou. quando depois chorou nas primeiras semanas. agarrada à sua fragilidade. num abraço sob si própria. sem vontade de comer ou falar. teia de insónias. quando ela ficava encolhida no chão de pernas cruzadas. quando em silêncio. o telefone dela tocava. quando não atendia. quando o telefone tornava a tocar. quando ela arrancou esse fio da parede. e já nada se ouvia. quando ela mantinha uma certa tristeza. muito tempo antes. depois de uma noite. ela pensou. quando passava dias e dias fechada em casa. quando ela tomou a decisão de continuar. quando deixou de lembrar e esquecer. quando ela aceitou. o tempo. um dois meses. quando riscou o terceiro no calendário. o quarto e o quinto. quando ela ao sexto sonhava. quando ela imaginava como e já riscava a vez do sétimo. quando ela contava o tempo que faltava pelos dedos. oito. um a um. nove. quando chegou a hora. a ansiedade dela. e a pressa dele. a água o sangue as contracções o brilho dos olhos. quando ele tão pequenino. ela sorriu. novamente. muito tempo depois. quando não são precisas perguntas nenhumas quando se é feliz. quando ela se abraçou a ele ao adormecer no seu colo. as duas respirações juntas. o cordão o umbigo. por um fio. o amor. o único por último e por fim.


terça-feira, 20 de abril de 2010

o ofício dos fósforos (ou o tempo todo)




tem setenta anos. talvez mais. Veste um fato cinzento muito desbotado. comido pela traça nos colarinhos e três botões mantidos por um fio. as bainhas envelhecendo com ele. junto a um dos bolsos do casaco, um buraco. ferida cozida a quente, por dentro. entra no café contando histórias. de ironia e mágoa. histórias de tempos antigos que não há já quem seja desse tempo. cicatrizes. porque é a vida que fica para trás com demasiados sonhos pelo caminho – diz ele. numa primeira combustão. o barulho vindo de uma pequena caixa. como se alguém soubesse. um segundo clarão. e uma prega virada do avesso. lá fora na rua, trânsito e respirações. faz-se um silêncio breve e novamente uma fogueira a nascer-lhe entre mãos. O ano passado o coração quis parar que já nem posso embalar o meu neto ao colo. diz com tristeza. senta-se forçosamente. fica curvado com os olhos muito distantes. há um autocarro que passa com gente dentro. uns rapazes que atravessam no sinal verde, a rir alto. uma senhora de bengala arrastando-se do lado de lá do passeio. um curto silêncio. é a vida com demasiados sonhos que ficam para trás. que partem. há-de alguém pensar. e no fundo um enorme vazio sobrando-lhe no corpo. como se alguém pensasse. O que lá vai, lá vai – suspira. levanta-se de repente. penteia o cabelo ralo, branco. observando para fora de si. olha para o céu e lê-se nos lábios um rumor. guarda o pente na serenidade de quem nada possui. talvez a inocência seja o doloroso abandono. paciência. é vida. não é assim? o último dos fogos em vias de extinção ou a trémula sombra que se vai apagando . ponto. mas o que será pior: a dor da velhice ou ter que morrer? – pergunta. uma breve pausa. ninguém sabe. não é assim? sem dúvidas nem certezas. tem setenta anos. ou mais. ainda a sonhar. como que a desaprender de contar o passado perdido e a assobiar ao futuro que resta.

terça-feira, 13 de abril de 2010

da soberba neblina (ou a finita mortalha de papel)



um homem que surge. senta-se e espera. fala sozinho. fuma prolongadamente todos aqueles gestos com a boca. não lê o livro que traz fechado nos braços. e ao falar sozinho só para si é como se não existisse. casualmente agita-se um pouco. parece nervoso. a inquietação é sempre invisível. move-se numa contracção instantânea, acústica. a espera é isso mesmo. na companhia do desassossego aguentar, persistir. e não existir. a originalidade do rosto, agora, para surdos e analfabetos. o olhar fixo, concentrado. pensa através de fumo. de cigarros múltiplos. uma mão sobre a cabeça. as mãos. as mesmas que apelam ao empregado de mesa. o pedido, pela primeira vez. que o empregado traz. as mesmas que concedem a fuga e a permanência entre um e outro. os poros, suor e tabaco. a mão segurando a chávena. as mãos. as mesmas com que, por fim, o homem paga o ócio em meia dúzia de moedas. gastas. sem esperança. de esperar. o empregado que as recolhe num esquisito tilintar. e depois nada. obrigado. as mãos de um levantadas no espaço de costas voltadas do outro. o homem inesperado. o empregado. perplexo o homem que deixou de esperar. desiste. não sabe porquê nem quando. torna a falar sozinho. palavras sumidas e desta vez, sem troco. não tem de quê. nem como.

a meio caminho (ou o ser nunca inabitado)



havia a rapariga que tapava os ouvidos enquanto caminhava. a direito, sempre tão amarrada aos pés, o peso dos ossos na vulnerabilidade da pele, hermética numa distância de sinfonia na sempre igual variação. saía pela porta. o vento a dançar à margem dos auscultadores. as chaves na mala e braços caídos. a direito, ao longo do imenso passeio. não chovia. nuvens depois, começa a chover. uma chuva miudinha. e a rapariga com os ouvidos tapados não ouviria se por ela chamassem. porque também o seu nome não se pode chamar. não há quem o diga. ela continua. e assim foi. segue. e é assim ultimamente. assim será. passo a passo. e quando não houver quem a veja é porque a rapariga no afastamento dos outros, sem direcções sequer, se aproxima cada vez mais do seu pautado regresso. na cadência do caminho. passo a passo. ao som de um blues que o deixou de ser num dia mais ou menos normal. e nenhuma voz. sílaba ou paradeiro nem identidade. vem. até mesmo que não haja hipótese de voltar atrás. deixa de chover. e dela não há sinal.