sábado, 25 de agosto de 2012

a esperança (parte III)



levar a cabo um ideal. podia ser esta uma das definições de esperança. dos que crêem e dos que vão à missa e têm talismãs. dos que já não acreditam, mesmo sendo optimistas em relação a algo maior do que cada um, tendo ou não uma espiritualidade ou até dos que nunca chegarão a acreditar, por mero pessimismo, cansaço ou letargia. levar a cabo o sonho. nas fraquezas que todos temos, nos sinuosos caminhos da mente que nos pretendem enganar ao esquivar da verdade, e nas incertezas cheias de contradições que num ou outro momento são a essência a apontar-nos ao essencial. mas baralhadas as cartas, e volta tudo a dar à raiz, à génese com que emergimos. nada é o  mesmo e pouco é necessariamente igual aquilo que foi. porque ainda há a esperança. e é precisamente sobre ela, a esperança, que me devoto sobre ti. sobre o teu âmago numa linha muito marcada, de devoções aprendizes e medos denominados. sobre o teu ser mulher, desassossegada mas completa, reactiva e também indefesa, nobre e sã de bondade, e sobre ti volto a colocar a estaca no meu peito firmado de fundura e compassos de utopia que vão redesenhando dia a dia a paisagem extensa e benigna de um só. e sobre ela, as esperanças geminadas, o teu tacto rigoroso nas diligências da exactidão e do prevalecente. e sobre mim as melhorias dia a dia, numa aprendizagem indomável de que vale a pena ser esta coisa que tu dizes que sou. seja na troca fluida desse corpo no meu corpo, o teu cisne branco recém-nascido com as velas ainda coladas à pele em membrana de aguarela. seja na tua fonte contorcida de águas límpidas de tantos lagos de outros tantos mares. e eu, sem te apressar, recebendo-o no meu colo em chamas até ao raiar primeiro do primeiro olhar em aberto, rectilíneo, assim que se sente preparado para comigo ficar frente a frente. seja olhos nos olhos, seja cara a cara. a raridade faz o mundo, o amor faz a extravagância do cisne negro em singularidade. faz ronha com as promessas matinais, faz o sono sem bocejo. seja no estremecimento que nos acredita, seja no acreditar em nós, por emulação. porque a esperança, outra vez, advém da espera. e a espera também se faz em movimento. é uma quietude irrequieta e febril e também acontece em segredo. quando duas crianças brincam, inocentes e inesgotáveis. na esperança, de cada uma, a inocência é pura. a ignorância também. esta última, com menos sabedoria. porque a esperança é só o conhecimento proveniente de algumas solidões, do gato de oficina deitado na sua insónia numa obsessão destinada a ser a cura de todos os males. o gato que não dorme enquanto não souber que pode, enfim, descansar. as crianças brincam, o gato não se recolhe, é fiel com as suas garras afiadas rasgando o insuportável clamor da partida e o susto da vida eterna durante as suas sete vidas de um místico encanto. e, todavia, a necessidade de implosão de todos os seus órgãos vitais, isto, numa tentativa de não salvamento, mas de resgate de si mesmo. as crianças retomam a brincadeira durante noites assim, que duram muitas madrugadas. até que o gato esteja pronto e ao dar o salto, concretize a excelência do retorno com o pano de fundo de um poço que vem logo atrás. no teu gato, comigo tu és. nas crianças que adormecem, eu penso ao lado da eternidade. e a esperança enrola-se como nostalgia tão boa de saudade quanto uma camisola às riscas ou um andamento cor de laranja, azulão. e agora?  é já depois. o idílico. a galope de um céu, acima e abaixo, de ver para crer. de (e)levar.

sábado, 4 de agosto de 2012

a força e a insegurança (parte II)




esta história começa, longínqua e distante, num país chuvoso. numa geografia latente em cristalino e largos lagos de um azul a pender para noites de blues e dias mornos. quando ela aprendia, ainda, por linhas tortas a escrever a direito, legítima e esforçada no seu dever de missão perante um mundo de mulheres e de homens. haviam rodopios e avanços, recuos e territórios movediços. havia a visita do espelho e o espelho em vista. chegava a olhar-se exterior a si, como quem entra num espaço onde já esteve mas que por circunstância ou inclinação para o abismo entre si e a sua outra, era apenas o método de chegar mais dentro, beiral onde desmascarada e autêntica se (re)conhecia. e o tempo há muito que era uma partida desigual com relógios a fazer de tiquetaque. desde pequena que gostava de brincar à apanhada e às escondidas, e cedo soube jogar ambos com o conhecimento das regras, ao ataque e à defesa consoante a oposição. chegada a si, olhando-se e escavando até ao olhar mais fundo, aprendendo igualmente que num primeiro passo poderia estar o passo seguinte. fora sempre assim, sob o território seu que dominava e a zona de conforto que não partilhava com ninguém. mas um dia, o jogo da apanhada originou uma outra correria, um valsa mais lenta. e a brincadeira das escondidas surgiu-lhe seriamente com contornos de pele tocada e a exposição dum coração com sons de dança como parceiro ideal. muito antes disso acontecer, a rotina era o prelúdio de um soneto cantado a solo. e só depois disso acontecer é que se lhe afigurou a possibilidade remota de duas vozes num coro em voz de igualdade. foi num dia, em que bela e inteligente, se deixou recordar que também existia. e que as velhas cantilenas cor de rosa regressavam de tão longo período de alienação. esta história recomeça aqui, vestida de um casaco negro e calças compridas e azuis a pender para uma noite de tango e dias inflamáveis. quando reaprendeu, nesse dia, a ser mais próxima de si e ao invés de fazer e dar por tudo e por todos, retomar a dádiva para consigo. nem sempre é fácil. mas nada se resume só a difíceis dissoluções. tem momentos de uma sonolência abrupta e outros de uma frieza tonta. instantes de instintos rápidos e outros de uma brancura imaculada. em que por todos os melhores panos com a pior nódoa é capaz de segurar na concha genuína de se abrir e de guardar, a pedra preciosa que tanto lhe forjaram, muito antes disso acontecer, a encontrar. veja-se: agachada com as pernas cruzadas numa postura de atenção incondicional, escuta e ouve, questiona e argumenta, protege-se na vontade do sim ao desafiar o não em lutas constantes e imprevisíveis. que nada têm que ver com o feitio, que pouco a ver têm com defeito. Ela, já depois desse dia, aproximou-se dele. e quieta disse-lhe  caramba,  tu sabes realmente o que quero  e ele, como que os envolvendo num lençol macio de um arquétipo primaveril e dilatando os lábios em curva ascendente respondeu: sim. sem sair, nunca, de ti. esta história continua aqui. quando o certeiro é o correcto, quando o certo é não ter absolutamente nada de errado. felizes, sabem-se. nesta história que começa...

terça-feira, 31 de julho de 2012

O passado (parte I)




da última vez que penteou os seus longos cabelos, caíram-lhe umas lágrimas que tinham choro. um choro solitário, simples. entrara na fase da vida em que a imagem de si valia muito mais do que aquilo que pudesse dizer. «se me perguntarem porque o fiz, respondo apenas que me apeteceu». recorda-se, como se tivesse sido hoje, do modo como as tiras espessas e ágeis levitavam até ao chão, fazendo um pequeno monte de vendavais vários, de um rolo de filme visto repetidamente. e se por um lado havia a possibilidade de se contrair por dentro pelo que lhe causava, existia-lhe na face uma sobriedade em formas de indicador sóbrio muito menos devastador do que seria de supor. naqueles minutos os olhos ricochetearam um antes vivido e em luto, da mesma cor que lhe apetecera arrancar. sentada, permaneceu imóvel à medida que encurtavam as distâncias de um nó desfeito à tesoura. com um movimento rápido e severo, as manchas escuras contrastavam com um brilho que ao invés de nascer à pressa, teve tempo em pensamento e em sobras e demorou toda uma estação para se mostrar. foi num sorriso rasgado que juntou todos os fios nascente e, com eles foi porque lhe apeteceu. nos meses seguintes era, então, a mesma cara num outro rosto. rio em janeiro, mar de fevereiro, águas de março e afins. [sob um recorte desaguado e estival]

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Abyssus abyssum invocat [in Tempus Fugit]




um instante, um momento, um segundo. quando tudo acontece nesse curto espaço de tempo e a única coisa que se conhece é a duração de uma saudade, de uma falta ou de um súbita sensação que se desenrola em outras infindas manifestações que provêm desse terço de tempo que não se possui. é no tempo que vai que sobejamos o quanto esse tempo nos aproxima. que desejamos não nos afastar, que mantemos os braços na posição de abraço e as mãos pairam no ar vago da espera. é a persistência desse véu que nos cobre, que nos despe e nos destapa, primeiro tu só depois eu. e tantas vezes sou eu o último a ver a tua pele indefesa, cheia de pontinhos e de claridade. um segundo, um momento, um instante. no tempo a ficar-te na face logo quando acordas ainda o amanhecer é um hóspede a chegar da noite. carregado de aditivos e somas estreitas, entre a horizontalidade em que o corpo que escolheste repousa e enquanto tu verticalizas o olhar e o silêncio. as respirações fundem-se para se confundir e os números no despertador avançam ao de leve consoante as incontidas carícias que resultam num despertar sem tempestades. longe vão os dias de temporais, as tardes bucólicas no amorfo sentido da vida ou até mesmo, as rotinas forjando o tédio e os fins sempre iguais. mas o tempo adianta-se e ao repararmos nele não se sabe bem quanto foi que passou, a matemática troca-nos a intuição e o que parece ser, já o é em continuidade sem limitações. o anjo liberta-se para se atar. vagarosamente, um punhado de vespertinas locuções maneja as bocas unidas, os lábios formulam as certezas habitadas no ocaso do quotidiano e o novelo estende-se até à proximidade mais justa e mais certeira. ateiam-se as fagulhas inerentes à vulnerabilidade perante quem se quer, acima de tudo, se deseja como quem agradece. louva e honra os nós desatados da insegurança. num instante, somos dois, num momento tomamos um do outro, segundo a segundo, a palavra a vanidade ou o mel destilado no espírito. e muito maior que o esperado, és de criar doçura tal qual as romãs. em raiz, nidificam-te no modo como vives. no verdadeiro e doce modo de me viveres. a eternidade é deixar-te ser quem és, forte e nuance de espanto. comigo, enfim, dobrado sobre a vertigem de morar no único lugar do mundo, encantado, onde me permites ser deslumbrado. num abrir-te e fechar-me de olhos. aquieto-me, intemporal. e sei-te assim do anjo sem abandono.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

um, dois, um (ou a plenitude)



ela tem muitas dentro de si. ela é só uma, mas com muito mais do que a aparência alta mistifica, em que se constitui. por vezes é um espelho impecavelmente híbrido, seguro e vaporoso. os cabelos adornando a face macia, a base na camada mais fina da pele, o rosto composto num nariz particular. outras vezes, quando brevemente insegura tem um ar mais sério, ainda que sedutora e tranquila no mesmo corpo e na mesma medida. ela veste-se de tramas muito profundas, o fácil não a estimula e o que é comum não a faz vibrar. é sim, o desafio que a move e lhe abre os ângulos que se abrem ao meio permitindo-a abraçar-se com a sua própria sombra. ela é o seu sorrir. é o sorriso. cedo, na presente estação, é encarada com a dedicação instruída por vê-la, ensina ao olhar os olhos cálidos e numa demonstração de valor acrescentado, ela vale todas as sete vidas que tem. e só a vida carece de ser somada numa vida inteira. porque há algo nela, que não chega a ser ausência. habita no que sustém e no que acolhe de peito aberto. convida a oração através das horas escuras de onde vem a luz, e aperta com muita força a bonita cruz que mostra a essência de não parecer deste mundo, nem mesmo quando sofre o que mais ninguém sofre. ela retoca-se como quem cuida de uma imagem rara. diga-se, aquela que é captada com lentes de cor. e depois corre para a rua numa pressa ritmada de confiança e embalo. ela desdobra-se em ser um todo e em alcançar tudo. e sorri, que nem uma criança. é o sorriso, ela é o sorriso. cedo, caminha pelos seus pés repletos de exactidão. e sabe que nunca é tarde para agradecer. ao fim do dia sabe também que só sabe voltar. do amor, consta que deixou-se tatuar numa mão cheia de carícias que sabem a festa. ela, na solenidade fiel ao tacto e no véu a descoberto do toque. em que de manhã é o sol. em que de noite é uma estrela. sempre alta, sempre ao luar.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

a queda (ou o balanço tomado de braços abertos)




naquele instante, começara a chover. primeiro, umas gotas enviesadas e estreitas lentamente. depois, mais intensas como se fossem neve a desfazer-se de precipitação. muito lívidas, incoloridas. há no ar uma camada de pó que se levanta, e ela seguindo-lhe o movimento em extensão e sempre a correr no limite que o tempo impõe, abre um guarda-chuva. cuidadosa, atravessa para o lado de lá do sítio em que estava e é íngreme, agora, a rua que tem de subir. muda de passeio ao longe, na terceira passadeira, e desaparece. do lugar onde alguém a observa – e sabe quem ela é – uma voz decifra a matéria de que são feitos os romantismos nos dias de hoje. à antiga e fora de moda.  menina que se custa, à vez, quando todos os outros riem por uma irracionalidade qualquer. menina que se alegra em si mesma e é feliz, mesmo quando os outros todos não compreendem nem como nem porquê. essa mesma menina, que desaba convenções pela curiosidade inata que alimenta. consigo. por tudo e em tudo. menina que derruba preconceitos a preceito de palavras tão suas, feitas por conta peso e medida. menina que sabe ser crescida na extensão da pequenina que quando não conhece, arrisca e quer. que não se contenta nem se satisfaz com mediocridades, que afirma «o amor não é banal» com a mesma naturalidade com que atenta o mundo através de um olhar mais denso e sem pele. mesmo sem asas, tendo-as. mesmo debaixo da pele, sobrevoando o tacto e o contacto. aquele que a observa nos olhares que lhe lança – é ele, seguro e crente – visa a admiração que lhe tem, ali parado na transição para a bonança depois da tempestade. inesquecido por pontos de fuga e perspectivas luminosas, baixa a rouquidão de homem como se domasse o tom das palavras de seda que acabara de dizer. pela menina pequena e grande. pela mulher em que esbarra, e num instante, baixa e levanta a cabeça. tem uma feição desassombrada e simbólica: sem hesitações, o soco é uma interrogação quando questionado “se já tinha visto alguém como tal”. aguardo brevemente o repto quando uma nuvem passa para mostrar que o mundo é um fio de água sem interregnos. respondo que nunca vi nada assim. ainda com a vontade de me explicar que não poderia. ele apartou-se e não reparei. ela fez o mesmo e dei-me conta de que a cidade flutua naquele perfil que mostra o quanto vale uma aparição. chove timidamente, de novo, e agora quem fica a ver a noite ganhar asas sou eu. a tarde inaugura a eternidade, o nocturno. guardo o que disse e não neguei. e ao voltar, no regresso, deixo-me atingir por uma mão que me guia. um membro que não precisa de ser notado para se denotar. percebo, enfim, que o amor absoluto tanto existe na extinção da sombra como no espreguiçar de um fogo felino. o amor puro inviabiliza a negação, aceita-se e enjeita-se no revés das feridas. madrugada dentro, um poema para uso doméstico cobre o silêncio, a paz e a aurora cheia de graça. para o que há-de vir - era uma vez uma menina e um menino. a escreverem sílabas com letras, de rosas jasmim e de alecrim. ainda a primavera, ainda a chegada e a partida. ainda a casa, sempre.

terça-feira, 17 de abril de 2012

o pintor e a bailarina (ou alguma liturgia poética)




era uma vez um velho artista com rosto de criança e de cabelos lisos, caídos sobre o sobrolho. a pele escurecida por natureza e um ar libertino, aprisionado na alma de artesão que mantinha refém. tinha mãos de oficina e veias trabalhadas no lume rubro, ainda torrencial. desse velho de aspecto de menino sabe-se o essencial: coleccionava horas, trocava os dias aos anos e entre os meses guardava minutos e segundos como quem dá à corda um relógio de parede, ainda a funcionar. gostava de livros e de histórias. e lera muitos ao longo da única vida que não escreveu. com tanta história, na cabeça e no âmago do seu silêncio – acumulou agulhas nas cordas vocais e as palavras foram cada vez mais o que lhe restara de um canto de outrora idade. um registo emudecido, pequeno por fora e a luzir por dentro. luz amiúde preservada pelo motivo de que a poesia não (l)imita a vida. e ele, que tentara com versos e rimas a combinação exemplar de uma perfeição que aprendera a notar no alcance dos gestos mais escuros, nos sinais que rondam as vozes do delírio e da sinceridade. ele, longa e vagarosamente retalhado numa imperfeição com traços de alquimia. uma vez, no ritual de girar essas roldanas de emoldurada eternidade, esbarrou com um livro. deposto no chão de madeira, incrivelmente perdido entre o caótico e o arrumado. pegou-lhe em todo o seu corpo de capa rija e abriu-o. recompôs os óculos na ponta do nariz e reconheceu-lhe a letra, fluida e em maiúsculas. lembrou-se de bilhetes e recados escritos nas manhãs de uma primavera longínqua, momentânea e simultaneamente, esboçando a feição que lhe ficara dessa estação verosímil. atrasou o olhar na assinatura que redescobrira, nas manchas de tinta permanente que sobreviveram ao tempo. aos relógios e ao acerto irrepetido dos dias que passaram. pouco se sabe se sorriu ou se chorou. só o desfecho se conhece: aconteceu o que dantes o intemporal havia previsto: hás-de trabalhar sobre a pedra o que construirás com a matéria delicada que provém de dentro, inequívoca. quer seja em bruto quer seja polida, quer seja no espicaçar as dores de umbigo quer seja no desapego da membrana que reveste o coração. hás-de trabalhar a obra sobre a rocha. quer seja de xisto ou de diamante. e depois saberás. fechou o livro numa ideia de voltar a experimentar o frenesi e o frémito do labor afincado de raízes e sólidas fundações. sacudiu a letargia do casaco e a utopia, sentou-se à mesa com todas aquelas reminiscências e concebeu nova tentativa: não era bem uma fronteira, assemelhava-se mais a uma linda linha espessa e intransponível. com contornos de uma elasticidade quase diferencial. de um lado a dança, do outro a resistência. de um lado o instinto de fuga sobrevoando como um corvo que vai perdendo a escuridão à medida que envelhece, do outro a fisionomia de ave rara, de andorinha - que é como quem diz uma outra maneira de dizer o que se não diz. asas planas que desvendariam baús ocultos e adormecidos, acaso certas coisas fossem pronunciadas do jeito certo, com meiguice e genuinidade. não foi bem recusa e renúncia ao peso assumido por palavras proibidas, escusa em dar explicações: foi apenas preciso esperar o pular de um gato selvático, para se ver que essa linda linha se tornaria mais maleável e emotiva, mais sensível de garras afiadas no instante da chegada. o livro falava-lhe novamente aos ouvidos, ditando ao velho revigorado num timbre de criança que a brancura é absoluta. quando a percepção afirma que ao invés do engano, o artista tem em mãos uma edição limitada. nesse dia o cuco cantou, por duas ocasiões. numa, o pano encerrou a cena e noutra, uma folha virgem pairou sobre uma imagem de orquestra. ele, diluído em aguarelas era um retrato de paz. e assim [com música instrumental de fundo e em ambiente de lusco fusco] era uma vez de príncipes e princesas, até ao fim. e era real.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

sal e pimenta (ou outros temperos e especiarias)



quando nasci deram-me um nome. iria usá-lo para a eternidade tal qual o sangue que se me principiava nas veias. optei por gastá-lo ainda muito novo, como um romântico incurável que acede aos encantos que Platão ensina no seu banquete. algures numa página, bastou-me uma palavra. porque o amor morde. o coração, a omoplata ou a curva descendente que acaba numa contorção muscular. num gemido - grito. porque o amor dá ao gosto o que a infelicidade tira do paladar. rumina as dores amargas e vomita as palavras doces. porque é sempre preciso ser-se feliz. eu era pequeno depois de ser crescido e foi quando escrevi esse nome lapidar que me apercebi que não havia outra saída: sei que houve um tempo em que tropecei em braços amorfos, em que escorreguei por ilusões de pouco ou nenhum sentido, em que caí arranhando a pele, sei que houve um tempo em que me levantei emaranhando pelas paredes todas as vezes em que cair é um ensaio para consequentes quedas, em que elevar-se é somente aguentar de pé o que o mar tem por correntes, o que as ondas traduzem por marés. a minha saída sempre foi ficar. nuns braços de estar, num chão firme de ser e pisar, num encaixe de lugar e de espaço. foi assim que me fiz e desfiz-me, foi assim que lavei talheres de simpatia e colheres de gratidão, foi assim que moer foi impreciso, e desnecessário. porque o amor serve-se a quente e a frio consoante os apetites. porque se degusta sem desgostos para a sobremesa. porque na hora de pagar, as contas fazem-se não só pelos dedos mas também pela supressão dos medos. noves fora nada, a regra é simples: nada tem de ser normal. nem esquisito. nem repetido. noves fora, tudo. regra de três simples: promessa de não prometer, a verdade em não mentir. e nunca dizer adeus. ainda que o tempo seja apanhado desprevenido com o estômago embrulhado em mil novelos por desatar – a única saída é ficar. é isso que faz quem escolhe não fugir. para não remoer. eu tive um nome desde criança, foi-me dado no corredor das urgências, tratado e cuidado na sala de espera e levado à boca na ala dos que têm alta depois dos primeiros cuidados. de intensivo, escrever hoje para o futuro - ipsis verbis – a epifania a digerir barreiras e outros muros com sopros e silêncios meigos. reconheço o que já sei: nem todas as razões têm sempre razão. porque só o amor tem dentes vorazes de trincar e engolir. de não mastigar. e contudo, faça-se jus ao nome na cedência em si mesma. pronto: ninguém morre de amor. ou de amores. porque só o amor mata a fome. porque só nós assassinamos o amor. enquanto ganhar é um vício e perder é a negação adiada. mas quando morrer é uma coincidência de morder, algures noutra página basta uma palavra para se pensar a salvo. e assim, dignos de entrar pela casa ainda fumegante, ingerirmos aquilo que o jejum faz, que é aquilo que tem a fazer. o nome que recebi - foi só e para mais tarde, enfastiado e de barriga vazia, desenjoar.

domingo, 4 de março de 2012

o estranho caso de Eros e Psique


 (ou curiosamente, que de estranho nada tem)


como poderiam saber se não tivessem existido? houve um lugar, um acaso nas horas ocasionais de um dia [in]finito, em que se cruzaram. por linhas rectas e convergentes, note-se, num ponto comum: conduziram a fala para os antípodas da surdez generalizada, as palavras até aos confins do ouvido que escuta e segrega os ecos e as vozes numa inata correspondência, os poucos gestos em olhares de delicadeza como quem se descobre deixando-se descobrir; dificilmente um só ponto comum chegaria para quem conhece de que matéria é feita o firmamento em noites estelares. como poderiam eles saber se não existissem? a exemplo, numa varanda velha, há um vaso com flores murchas, um animal doente, roupas esquecidas num estendal gasto – e imagine-se, que triste, um vazio acomodado que nem o vidro baço deixa ver. por outro lado, não muito distante, há uma janela de se observar por dentro e por fora. não tem varanda, mas compensa-se por ser maior que algumas irrelevantes fachadas de microscópio. tem cortinas de ar e de vento, abre-se à primavera quando o sol a invade, e mesmo quando cai a chuva pede um pouco mais, que entre e se banhe. que feliz, imagino. que felizes, quero crer, eles que sabendo da fragilidade do mundo que gira e gira, reforçaram o elo em doar-se, de maneira original e de forma incontida. [algures, a lenda enlaça o mito e o mito desata a semear frutos na árvore da plenitude]. e como posso eu saber? porque eles sabem. e não me estranha, não estranho sequer que existam. sempre que os vejo e revejo, a ele Eros, o ímpeto e os impulsos, a ela Psique, serenidade e ambígua, lembro-me [em transparente reflexo] que ser-se dois não é ser-se mais que a fronte e o reverso da mesma coisa. é ser-se o rosto por inteiro, da nuca até às pálpebras, o corpo por inteiro, da espinha à carne, da cabeça aos pés e dos pés à cabeça. é não ser-se outro, de outrem para ninguém. porque a esperança está em não ser-se menos sem tentar-se a ser mais do que isso. porque sim. e em dose redobrada. porque sentir não é apenas necessário, é vital. porque foi o sentido de sentir que o tornou Homem, que a fez Mulher. e porque a crú, esta história sabe melhor. porque é bela a cumplicidade que fica, da beleza em falar a verdade. Assim é. Assim seja.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

relembrança (ou a facilidade do irrepetível)




a memória bateu-lhe à porta com uma mala cheia de recordações. e pediu-lhe se podia passar aquela noite, ali, na sua companhia. tinha de parar um pouco antes de continuar, explicou. o pedido foi aceite, mais ou menos de forma pacífica. entra, fica como se já aqui tivesses estado – disse. a porta voltou ao seu lugar, o ambiente voltou ao que estava. tenho ideia de cá ter vindo, há muito tempo. e tu? surpreendentemente, a visita assumia o papel de protagonista, na figura do anfitrião transformada em figurante. o que trazes nessa mala? por momentos, o ar fez-se solúvel. as palavras fizeram-se novelos e a resposta saiu-lhe num travo de retórica delicada. lembro-me  de tudo. do lenço axadrezado que lhe cobria o pescoço, da camisola de lã cinzenta com as mangas que sobressaiam debaixo do casaco preto. da expressão de curiosidade que havia no fundo de dentro daqueles olhos convidativos. das suas mãos cuidadosas, da grandeza das poucas perguntas que fazia quando se conheceram. ou da franja que lhe deslizava numa das margens da face, oculto o olhar directo e furtivo, num misto de atrevimento e discrição. suspirou e calou-se, sem saber se tinha acertado correctamente no que acabara de dizer. recuou um pouco atrás mas sem poder pensar muito nisso, já que a memória desferira o derradeiro golpe. falta-te uma coisa, lembras-te? foi então que o tanto que tinha para dizer, se contraiu. foram devolvidos os pés ao chão, e num momento, a comparação mostrou-se inevitável: a mesma curva dos baloiços em que te vi brincar é quase a mesma, de muito parecida, com que me revelas na tua alegria. nisto, tudo se acomodou. esboçou uma reacção feliz, das que se cumprem com lugares comuns. e descansou.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

claro escuro (ou o luar)




sexta feira, em nocturna passagem. amanheceu escureceu e anoiteceu. fenómeno casual como o tempo que avança. algures há uma casa, alguém se recolhe, encolhe-se sob o calor da cama em que dormiu o dia inteiro. e escolhe um filme que adie a vontade de se fechar na sua concha acolchoada, para até depois. entretanto, num outro ponto incidental, há um coração onde é sempre madrugada. por maior, um único pormenor: na vida que se habituou a viver é a transparência que lhe ata e desata todos os nós, sem surpresas sem sustos sem incógnitas. a semelhança está, ocasionalmente, nas contracções que demora até se expandir,  até depois. entre uma coisa e outra, o tempo avançou de um corpo ao outro sem tocar nenhum deles. por momentos, os olhos colidem no mesmo movimento. mas só isso, algures entre o silêncio e a vigília. eles estão exactamente posicionados sobre o lado esquerdo do sonho, sonho esse que suporta tudo aquilo que importa. algures, esse coração sabe de alguém e alguém sente esse coração. por fim, são os gestos que repousam, deitados. até para depois, sábado. ou até mesmo, até para depois disso.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

o mergulho (ou o episódio heróico que faltava)



o que aconteceria ao trapezista se não tivesse rede? foi com esta questão que se deparou, num qualquer lugar de um tempo qualquer, enquanto o contorno dos olhos transparecia algumas imperfeições ou o brilho dos lábios a chama descuidada da sua boca fechada. arranjara-se como algo divino, pintara-se para encobrir os fantasmas postiços que teimavam em reaparecer. porque naquela data ressurgiam todo o tipo de convidados indesejados e indesejáveis, porque naquela data as marcas ainda eram demasiado visíveis. para se confundir, para ser confundida. o que aconteceria ao trapezista se não tivesse rede? sentiria a queda? a rede desfazer-se-ia com o impacto? o que aconteceria? de pé, mirada por um espelho sujo, disfarçando que aquele não era o momento de mandar o barro à parede e ver no que dá. pegou, isso sim, no lápis adequado. desfez as olheiras e imaginou-se de longe com uma tiara a enfeitar-lhe a beleza dos cabelos, num foco de incêndio ao que é maravilhoso. de longe, a terra não lhe engolia os passos, e mais longe ainda algo lhe devolvia a liberdade e a leveza que só quem regressa à essência do que é, pode ter em relação aos que se abandonam. quis recomeçar do início. fulminante, subiu mutuamente os braços, o direito e o esquerdo em uníssono, as mãos num coro lento mas de uma regularidade exemplar. e na posição em que estava, dançou ao rodar sobre si mesma. com o consentimento do corpo, voou. sem roupas, e essencialmente, sem precisar da capa que não lhe servia já para coisa nenhuma.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

dos amantes (ou a efeméride em estado febril)



o amor está para a natureza humana como os planetas estão para o sistema solar. de Júpiter a Saturno passando por Mercúrio e terminando em Plutão. e todos os dias se continuam a descobrir novos planetas da mesma forma que todos os dias se continuam a desvendar novas formas de perpetuar o amor, essa arte de enamorar o gémeo de si mesmo. no caso deles, em absoluto planeta Terra, o desenlace era uma fórmula um pouco mais complicada. ele queria ser sublime sem metafísica, ela desejava ser a vanguarda de mulher da sua geração. e teimosamente chocavam frontalmente, no mesmo caminho – curiosamente -  a velocidades iguais. só para adoçar o desfecho. ela dizia: pode amar quem quer. ao qual ele respondia - mas ama mais e melhor quem sabe. ela palpitante, ele na expectativa. mas na força que cedia à distância, ele para ela: o meu mundo és tu. ela para ele: hoje, o amanhã volta a fazer sentido. acabando por fechar os olhos para se beijarem, a tremer dos membros superiores com as despedidas que eram ao mesmo tempo a saudação daquilo que é inteiro. por alturas de um dia catorze de um determinado mês, ele vestiu-se a rigor de fisga apontada a ela. e ela apresentou-se com o coração desmascarado e pronta a ser conquistada. pelo menos por uma vez, estavam certos de que atirariam a pedra ao ar só depois de perguntar quem lá vem. cruzaram-se sabidos e achados, chocaram ao de leve no verbo querer e, a julgar pelo modo como se entregaram, neste mundo ou num outro por eles inventado - a maior descoberta está em ser tudo e todas as coisas, por amor. assim, naturalmente que a pedra se transformou no melhor e no mais bonito que tinham para dar um ao outro. o amor, no caso deles, viveu pela vida fora. [de tão imenso, como o universo].

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

o drama de tchaikovski (ou o bailado da alma)



O instante conta-se da seguinte maneira: os animais grunham, bramam e chiam. rosnam e miam e à semelhança do que sucede com os humanos existem barulhos que não se entendem. que não esclarecem. todavia, a mistura do burburinho com a algazarra adensa ainda o que o silêncio tem de ensurdecedor. após este instante, contado assim, o pano caía e o movimento ia ficando reduzido. sabe-se que foi já a altas horas que tomou como nítida a diminuída verdade - construída que fora com grandes mentiras - e fez de conta. pelo contrário, obedeceu como pôde à ferocidade e acalmou cada esforço. houve ainda um instante, no canto do cisne, em que lhe chamou de cisne negro. onde bateram asas negras no cenário branco, esborratado. e no finalmente da coreografia, o antes seria esquecido durante todos os erros, só para depois se perdoar.

tiro ao alvo (ou a velocidade do disparo)



numa noite destas deu por si, às voltas, a remexer em caixinhas e gavetas em busca da sua antiga máquina fotográfica. encontrou papéis amarrotados, postais vincados nos cantos e até cartões das mais variadas formas e feitios com os mais variados nomes dos mais variados assuntos. da máquina, nada. um rolo apenas, por revelar

- encontras com facilidade o que procurares com fervorosa vontade, disseram-lhe à uns anos atrás

quando nesse tempo andava com a máquina sempre pronta a captar todo o tipo de acontecimentos exteriores que lhe apareciam com tal nudez, e que não desperdiçava fosse pelo que fosse ou estivesse como estivesse. tinha essa paixão, que coincidiu com o tempo em que também se apaixonou. era mais jovem e um dia, aconteceu. apaixonou-se e deixou-se apaixonar. recebeu a tal máquina num aniversário ou numa data especial, nesse tempo em que se sentia numa dupla realização – por algo e por alguém. ansiava os telefonemas, hesitava no que a voz imitava de silêncios reprimidos, reagia aos momentos como quem vibra de estímulo e magia, e guardava a vida como quem vive o que só cresce por dentro.

um dia, a lente partiu-se. a máquina deixou de funcionar como dantes, as fotografias saíam desfocadas e a paixão fugiu-lhe algures entre o sorriso de um bebé ao colo da mãe e uma árvore com o tronco rasgado pela madeira fendida. O que se passou a seguir? a idade avançou, o cabelo cresceu novamente com outras raízes, ocupava os dias com rotinas ocasionais e prosseguiu – como as pessoas normais – os estudos, as idas com amigos a festas, os almoços de fim de semana em família e as restantes [mas inerentes] responsabilidades de quem sobreviveu ao que só fica cá dentro.

da máquina, nada. algumas retrospectivas e uns quantos retratos, apenas. na altura não a arranjou, pois que não é possível remediar o que não tem concerto – disseram-lhe, a sabedoria popular, muitos anos antes. mas no futuro

- encontrarás o que aprenderes a procurar devidamente, disse a si uns anos mais tarde

até hoje

quando, sem aviso prévio ou previsão, deu por si às voltas sob qualquer saudade que se fez de Fénix e foi por isso que remexeu em tudo o que era canto em busca da sua antiga máquina fotográfica. mesmo depois de tudo [ou nada]

numa noite destas – em que tornará a acontecer, como se fosse a primeira vez.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

frente e verso (ou o sentimento escondido na pele)



eles vêm pela rua num semi-abraço, na metade de um que ao outro se une. trazem uma expressão muda nas suas feições e uma bengala para dois. uns dias é ele, outros dias é ela. é a vez de um deles. amparam-se com a fraternidade de se terem por companhia onde quer que vão. e mais a bengala que os ajuda; não por serem velhos mas porque são cegos. porque não podem ver as coisas mundanas que tantos de nós tornamos invisíveis: os sinais, as imagens, o que está mesmo ali ou mais adiante. o que não está nem esteve ou que sempre permaneceu, o que podia vir a estar. eles não se vêem, mas reconhecem-se. para atravessar, por exemplo, dum passeio para o passeio do lado oposto ficam muito sérios. muito juntos. fazem-no devagar e em alerta. e chegam a ouvir os próprios passos só por uma sensação legítima de certeza. depois deixam a seriedade breve, e alegram-se mutuamente numa linguagem que poucos podem entender. dir-se-á que parece que brincam às escondidas com o resto do mundo. nessa cumplicidade digna e talvez plena de quem torna todos os demais sentidos mais inequívocos do que aquele que lhes fora negado. continuam a andar e tocam-se, mesmo que desconhecendo a imagem onde o corpo tem o seu final. mesmo ignorando os limites que na grande maioria, se mantém:

abraçam-se na ausência do que não podem ver. e amam-se, mesmo assim, sem a inútil esperança de tornar tudo mais claro.

desaparecem numa esquina, na ironia de mais ninguém lhes pôr a vista em cima. sem como nem porquê, a história deles é a história de tanta gente. ligeiramente diferente. mas só porque hão-de envelhecer com a ideia de que são perfeitos na medida dos dedos. porque hão-de continuar a brincar, pelos vistos, por detrás de nuvens muito densas – ou de uma cortina de fumo muito espessa – ensinando a sombra ao medo, ou o amor sem medo nenhum.

[virados um para o outro] a tua cara não me é estranha [porque não podia ser].

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

amanhecer (ou um relato de intimidade)



ameno é o dia, que começa com aqueles tons que parecem saídos da mais vistosa fantasia. de que somos capazes. e de que somos órfãos também. uma brisa suave corre no ar, as aves da manhã passam sucessivamente junto à janela. e à mínima alteração de luz, tudo parece uma explosão de cores intransmissíveis. ameno é o dia. e ela levantou-se cedo como habitualmente. o vento passa-lhe suave e dócil pela janela. e a brisa é doce, naquele momento de entusiasmo. quase lânguido quase ao extremo. ela contempla a cidade com os seus olhos grandes, com o seu rosto franzino. com a sua pele claríssima. com a curiosidade que desenvolveu com os anos. ela é de ferro e de porcelana, em simultâneo. lembrou-se naquela manhã amena, de tantas coisas. riu e chorou, vestiu-se com a primeira coisa que levou às mãos e sentiu uma enorme necessidade de. nada é dispensável. retocou brevemente os lábios e escondeu a sua feição mais triste. perguntam-lhe muitas vezes se é feliz, se está bem. mas o seu segredo é sorrir para os solitários e sorrir mais ainda para os que não lhe são estranhos. quase nunca tem resposta para esse tipo de perguntas. porque também ela amenizou as palavras e o que diz. mas porque nem sempre isso lhe apetece. foi do que se lembrou. e no meio de tantas coisas que lhe vieram à cabeça - nos seus grandes olhos no seu rosto franzino na sua pele de anjo sem deuses – deixou-se levar pela brisa, invadiu-se de generosa bondade e tornou assim mais fascinante o dia ameno, fazendo assim das lembranças um benigno corpo presente.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

a rapariga (ou a boneca de corda, às vezes)



ela está sentada à beira da cama. a espreitar através das cortinas a natureza das coisas que estão fora dela. porque é fora de si que se concentra no que tem dentro de si mesma. parece confuso, tem alturas que sim e outras que nem tanto. hoje é uma dessas raras alturas, hoje é dos hiatos mais tranquilos de ultimamente. sentou-se à beira da cama e pôs um discos dos antigos para escutar de uma ponta à outra. qual a subtileza disso? ouvir as horas mas longe do tempo.

quem a conhece, diz que é capaz de "olhar para o boneco" de manhã `noite. porque tem recaídas, mas que mesmo assim nunca desiste. para quem a conhece, ela brilha na invenção dos espaços. hoje está em paz, serena. ou pelo menos, a parte dela que deu tréguas à outra

- a que termina quase sempre os dias sob o peso [leve pluma] daquilo que pressente em tocar, do que teima em olhar e do que até secretamente pensa sem contar a ninguém. o cansaço e a fadiga são quase sempre precedidos de uma oração: da coragem, um dia, farás a valentia. e então, viverás sem peso nenhum, sem muros no teu jardim onde morreram girassóis e semeaste árvores de fruto na infância. coragem. já podes, então, ver onde o oceano se enamora do mar. hoje, sentada à beira da cama, encara-se incalculável. minutos antes da música terminar.

ao fundo, aquelas palavras dão-lhe sentido e alento. repete-as uma vez mais, e nisto - já sem música - percebe através das cortinas que o céu está azul. com ondas azuis.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

o crime reeditado (ou voltar aqui)




[voltei e volvi e

sonhei, achei]

eu já devia ter os olhos fechados quando isto começou

desconheço como ou sob que efeito recordo-me só que

a cabeça desligou-se do mundo, foi nesse instantezinho

do teu eco. enquanto tu me falavas ouvia os sons atentos

do teu eco

que era voz que sobressaía em género de memória acústica

que finalmente regressava mas, extenuada ocasionalmente

ressurgida de um outro tipo de silêncio, diferente, ou

talvez fosse só como calha, se calhar só momentâneo.

isto começou, quando ainda era a noite na tua voz inaudível. a noite no que te queria perguntar e pergunto, mas tu já nocturna não me restituis nenhuma resposta. a noite pareceu-me tão maior de outras que existiram que julgo aguardar sempre pelas manhãs na ânsia de que me digas alguma coisa, somente porque a noite termina sem inversão nem invenção de marcha com o amanhecer seguinte. em diante, havia na minha frente uma sinfonia depois de tanto tempo, a récita que esperou pelo melhor momento e agora, o ideal do binómio lábios e boca, era tudo uma questão da tua voz que falava e fazia eco aproximando-se a passos largos de mim, ágil como

uma língua afiada que é a faca de cortar a respiração:

- não te vejo mas consigo sentir que estás aí. e permaneço imóvel, sem sinais de distracção mas em vez disso, mais disposto e mais exposto. a única luz é a que passa da janela por umas frestas que costumo deixar, respiro à semelhança de um exame médico de auscultação, alivio o aperto da escuridão sobre o domínio da fragilidade e continuo a ouvir-te e tu continuas falar. fazes eco:

conta-me como foi

agora que a noite é imensa e já te tornaste num murmúrio demasiado preciso, agora que me tento mexer na cama devagar encostado às almofadas de costas direitas, agora que quero saber de cor todas as palavras que me diriges, quero decorar cada frase e preencher as superfícies brancas das paredes com relevo e suores frios, com imagens trabalhadas no tempo que existiu e agora, acorda-me desta letargia sem sobressaltos, cativa-me, mantém-me acordado, repete-me:

conta-me como era

posso partir do princípio que isto não é um pesadelo? um delírio da minha mente? respiras para cima de mim, cobres-me de monóxido e de dióxidos, sopras pausadamente ao meu ouvido enquanto te sinto a segredar-me qualquer coisa que nunca antes saberia, se não fosses tu, nunca estaríamos tão perto tão unidos, se não fosses tu [será que algum de nós está igual como antes?]

vou contar como foi

era noite. lá fora uma agitação de árvores e ramos que se partiam na violência dos abanões, era noite e aterrorizou-me. a surpresa apanha-nos quase sempre sem preparação, é inerente ao mistério, aquele barulho separado numa meia distância de vidro e pensamentos isolados, não estava à espera. estás a seguir-me? agarra-me o raciocínio e vem comigo. [não há demora, sigo].

pausa, voltas um pouco atrás para seguir em frente. a noite é para dormir, dizes-me. e os teus olhos dizem, e a tua pulsação diz, e o teu corpo não contradiz. e os teus reflexos dizem, a tua hesitação diz, e o teu pulso latejante torna a dizer que a noite é para dormir, não estava à espera,

porque era noite,

e o imprevisto já lá estava, e mostrou a sua face

caiu a máscara, revelou-se - vês? vê com os teus

próprios olhos, isto nada tem de loucura, vês-me?

eu tento ver-te, mas é no escuro que te sinto aqui

fecho os olhos pestanejantes, sem receio de as imagens me trocarem as voltas ou se são as voltas que me baralham as imagens, daqui não saio enquanto não disseres o que tens a dizer, a tua coragem torna a minha bravura numa personagem secundária de filme assombroso na cidade que tranquilamente repousa fora de nós, o relevo de tudo isto reside nessa voz de ti que possuis:

estás tão calado

não dizes nada?

não te vou dizer nada, por enquanto

é a tua autoridade verbal que conta,

- tu sabes sempre o que esperar de mim, não é assim?

a verdade verdadinha é que têm havido tantas noites

[juro]

crescidas e adultas, lembrando-me o dia em que me deitei no chão enquanto me contavas coisas sobre ti com tanto tempo e com tanto pó em cima. e um sopro tão delicado bastou para te olhar

pequenas e dóceis, como aquela em que desenhei linhas de ar com a caneta que me emprestaste, com tinta que seria permanente. tu: toma atenção, não vale espreitar estás a ir bem, muito bem

noites inacabadas, de páginas de livros que não terminei já sem forças ou unhas que roí com a persistência de um desconforto arrancado com os dentes, embalo habitual num sono flagrante

noites moles e macias, a minha cabeça encostada aos braços do sofá com os teus braços que me abraçam, sobre a tua vigilância e protecção o sentimento de segurança como se fosse uma vertigem mas da qual nunca se cai [e se caí eras tu para me segurar] porque ainda me vais deitar

geométricas e abstractas, que são poucas e evito, tu sabes. aquelas que só têm formas muito estranhas umas das outras, que fazem-me pensar e não quero [quantos lados tenho eu para ti?]

as noites em que pouco descanso ou não descanso mesmo, em que estou presa por linhas perpendiculares e luzes no interior de áreas vazias, e se por acaso há uma interrogação desfaço-a sem mais nem menos: a consciência só é útil se estiver livre de suspeita e num estado de leveza

de repente,

penso que me estou a esquecer de alguma coisa, desculpa

- estou a fazer um esforço para me lembrar, vou ser capaz

[ajuda-me] ainda saberei das noites em que precisei de ti?

...

as paredes estavam cheias de recados, coisas que tinham ficado para trás quando corremos demasiado, um medo qualquer estúpido que não compreendia e uma saliva seca no canto mais seco da tua voz, num tom abaixo, havia a minha necessidade de ir até o mais além possível, de te procurar onde tu me havias encontrado

foi assim? diz-me se foi assim

esse silêncio começa-me a incomodar

não me consigo lembrar de mais nada

agora, claro e escuro misturam-se é de

noite, desculpa.

está muito frio e estou tão cansada

e imprevisível]

sempre que te quiser posso ficar?

nunca tiveste de partir [assim era]

mas assim foi?

- ele acordou a transpirar em bica

acendeu a luz de fogo: o candeeiro

e olhou para onde dormia

- como criança - o coração.