sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A sós (ou como deveria de ser)





o lume no interior das chamas

para respirar-te (fumo e cigarros)
primeiro na faísca arrasando
a partir de dentro

segundo
a implosão que a olho nu
nos vai consumindo a ambos

os gestos que arrefecem
passado algum tempo
na mesa voltada para as palavras que
não recebes quando

como quem
escreve contra a luz
e a favor do vento

atravessa o gelo através do
mar
na distância de mar entre dois corpos de
água ardente

as chamas no interior das labaredas
lume antes e depois de tudo de ti
que são lembranças recentes
de quando te reaprendo noutras circunstâncias

de quando mero e casual
digo que não tenho medo
e tu não sabes o que me responder

um dia

serei todo aquele que te cruzará intacta por inteiro
em silêncio

ardendo e fervido perto do fim
apagando o tempo sossegadamente

(e escrevendo só continuarei a es cre ver
ateando o fumo parado num cigarro mudo calado
e sem pontuação)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A tinta permanente (ou o poema saindo da garganta)





primeiro acto: olho para este calendário que tenho comigo, depois de anos a acumular agendas que não abri, acontecimentos que não programei, casos e acasos que nem de perto nem de longe ousei planear. O dito calendário está parado. E agora que falo nisto, ou melhor – escrevo, ele murmura que é uma folha lisa de jornal encontrada no meio do lixo e aparentemente limpo e sem uso. É um pedaço de papel separando notícias que dividem o mundo. Margens entre a guerra e a paz. Murmura-me o estado das coisas imaculadas entre agrafos e trezentos e sessenta e cinco segundos de atenção em que

poder-se-ia ler que o novo ano nasceu faz, agora, quarenta e oito horas – na exactidão em que se pronuncia, que a década que passou foi um dia como outro qualquer ou que novas fórmulas para combater o que é efémero seriam descobertas com renovadas formas de vida. Á priori estaria certo. Mas na realidade, é deste café e desta cadeira que como espectador discordo com ele numa incerteza afim. Não há ninguém a quem perguntar. Não há respostas. Nisto, olho para o calendário outra vez e vejo apenas números ordenados anunciando a lógica das quatro estações que em si se contraem

umas a seguir às outras num simples exercício em que mentalmente convoco datas de algum significado, enumero as que perderam o rasto entre si e as que ainda espreitam a sua implosão. Nesta altura, e já penso vagamente no que será daqui a um mês. Distraio-me na sua presença. Acendo um cigarro e para a semana talvez te encontre. Não esperes, hei-de apanhar-te de surpresa. Não te assustes: sou eu - a olhar para ti. Por ti. Continuo a pensar através de algoritmos. Algarismos e ritmos. Olho para ele as vezes que forem necessárias para perceber. O que diz, o que tento dizer – ouve-me

amanhã é a tua vez. Porque não vieste mais cedo? Para a próxima não há-de passar. Mas como, como é possível? Quem mais saberá que dia é hoje e que horas são. Estamos em Janeiro, folheando o começo naquilo que acabou numa homenagem a um deus romano. Pagando em moedas as crenças de uma vida. E recomeçando sempre, amanhã é a tua vez. Fevereiro chega quando algumas máscaras, finalmente, se despem após os excessos do medo. O traje é livre, a vergonha e a coragem também. Os corpos dançam horas a fio desafiando as regras do adeus à carne – enquanto o diabo, já apregoa o povo

esfrega um olho até Março. Nessa altura, evoco velas que ardem numa mesa redonda. Vá lá, pede um desejo. Sopra de olhos fechados e pede. Não queiras ver. Sente. Apenas isso. Mesmo que não haja pedido melhor do manter-me vivo para vos continuar a ter comigo – os pulmões cheio de ar a respirar cá para fora para que não sufoques. Abril? Não te vou mentir: o importante é a verdade daquilo que mostras. És tu? Sou eu, já o disse. Andando, vagueando à procura na tentativa e erro os rostos da Primavera subindo escadas abandonando o chão. És tu emergindo amenamente contando os dias

em Maio pelo desejo de que também sob este céu me apareças. Na cor branca mais do que tudo, dizendo do que escavaste fundo até ao centro do mudo. Em órbita com a rotação da terra nessa fase voltarás a falar e a primeira coisa que dirás é que o tempo fica amarelo quando queimado pelo sol. O tempo a ficar mais quente – eu escrevo calor sob brasas – o tempo em que de portas e janelas abertas, a luz entra em nostálgica geometria. A trinta ou quarenta graus matando a sede num chafariz. Mas não te esqueças que voltaste a falar - promessa que alcança a essência dos teus lábios

e eu digo-te que metade da água foge-nos da boca e a outra metade afoga-nos em equinócios por meias palavras. De Julho a Agosto mergulhando rente à areia e encoberto de azul. É a quietude das ondas bafejando loucuras de verões antigos. Que não cometeste. Ou que falhaste. Memórias que esqueceste ou nem tanto. Daquela vez em que se almoçava à beira da praia, ou do carvão sujando as mãos, a infância pontapeando uma bola ou pedalando despreocupado por entre devaneios de uma segunda juventude. Lembras-te? O mar colado à pele, vermelha. E julgar que estás bem

de novo, assim que se aproxima Setembro. Tudo regressa. As malas com pouca roupa, os pés largando sal. Suspiras, ao início do Outono. As folhas caem dos ramos pedindo auxílio – exigindo repouso. Adensa-se a agitação das marés e a lua ilumina as cidades que brilham a poente. Descansa. Ao acordares faz-se Outubro nessa balança incessante em que o tempo passa pesadamente. Corre – não te atrases. Agora descansa. Tudo regressa. Os lugares por onde passas são o peso dos lugares a que regressas. Mais tarde ou mais cedo à medida que vai escurecendo. Ele continua a correr, agora devagar vai

na sensação de uma aragem. Está frio. Ao largo ou de tangente de quem se enrola em cobertores debaixo de arcadas ou se amolece à entrada da última saída. Ouvem-se comboios a vapor nas paragens carregadas de gente, e na penumbra soltam-se abraços como quem chora de emoção. Como imagens de nevoeiro que a todos pudessem tocar-nos o coração. Tiquetaqueando. Ficas? Não me vou embora. Chove como nunca e não quero ir neste temporal. Ficas? Fico. Chove durante todo o Inverno e as madrugadas são mais longas que o habitual. É em Dezembro que as ruas têm esse cheiro húmido

essa temperatura no limiar da geada e da neve e o pó se levanta à velocidade das aves. São asas que voam no alto, velozes, pousando no cimo das casas construindo as suas moradas. Cantam, ou assim parece. Às vezes têm voz de gaivotas, sons monocórdicos e sem tradução. Noutras, sinfonias gorjeando o namoro das pombas nas esquinas das árvores. Até, pequenos assopros de patinhos feios que se apaixonam na inércia dos lagos. É Dezembro. E para breve o solstício vem-nos do sul. Mas como sempre, aguardamos em prelúdio a última ceia, digna de conceito, a que temos direito – pois

que se arrastam de igual modo mulheres de luto nas igrejas, pequenos sorrisos sem motivo, demonstrações irracionais de magia e circo. Porque sim, é apanágio da época – famílias unidas nos passos em volta em visita e famílias destroçadas pela fome. Porque não, amantes que partem para as suas terras distantes ou mães que embalam o primeiro filho. Pais que contam histórias à filha mais nova – numa birra doce, dela, e terna resiliência, deles. Irmãos que se telefonam à distância de países e filhos únicos que brincam sozinhos no escuro dos quartos. Primos, tios e avós que habitam nas correntes

do passado. Ou o futuro atrás das grades. Sem que sobrem presentes ou escassos restos de um momento. A dádiva em nome dos laços. Todos os nomes, e os laços apertados que com tons de arco-íris rasgamos num impulso desde a força à resignação. Esta é para ti, aquela também. E aqueloutra. Esta é para mim. Cada um como cada qual numa postura física indiferente abrindo caixas de chocolates, vestindo camisolas de lã e trocando gravatas. Ou perfumes em acção de graças. Desgraças é que não. Ao menos, por um instante, nos perdoem não ouvirmos falar da culpa que todos sentimos, nesta

altura. Em que a pena só fica bem naquele que não tem, não pode. Naquele que não quer. Desgraças é que não. Por uma vez que seja, francamente. Estás perdoada. Estamos todos, no fim de contas. Embora certas contas não estejam certas, dois e dois sabemos lá o que está errado. Porque é na ambivalência que me refaço. Segundo acto: acerto a minha consciência no sentido da existência, e inclino-me perante o pensar que pouco ou nada nos resta quando perdemos já – quase – tudo ou que nos falta já – quase – sempre tanto quando queres acreditar obstinado e sem dúvida alguma, pleno e tão sincero

que doze segundos de trás para a frente trarão a felicidade ou a bonança em rota de colisão com os mundos que mastigamos ao sabor das passas. Doze traições, doze histórias curtas, doze vezes doze – lá está o fogo em direcção ao ar elevando espasmos de esperança e quebrando longos silêncios. Aos teus olhos tão puros e magoados os votos para que duremos uma eternidade, para que resistamos ao tempo e às catástrofes naturais causadas por todos nós. Dia a dia, ficas mais bonita que o dia anterior enquanto acreditares que tens tempo para te manter de pé e resistes, esforçadamente – vejo-te

ao olhar para ti, como antes o fizera, és um mero calendário que me acerta no estômago com a fantasia que me mereces, daquele baloiço que deixei ao vento quando ainda saltava muros para lá dos canteiros e descia caminhos feito à pressa, de cal com um sonho dentro do bolso dos calções sonho esse que nunca me fora roubado entretanto encontrar-vos meus amigos meus amores teus desamores meus de roda de um velho pião girando perpetuamente. Desde a era que as histórias eram uma vez e tinham um final feliz. De lareiras quentes e labaredas inapagáveis - despertas a claridade antiga

deste terceiro acto: em que a letra com sangue entra. E se mistura.