quinta-feira, 29 de abril de 2010

trilogia da sobrevivência (ou a salvação)



ouro prata e cobre. três graus negativos. numa qualquer cidade. três indivíduos frente a frente. estão parados exemplarmente à volta de uma mesa redonda. em ambiente nocturno de um bar. e bebem o mesmo. usam óculos escuros. não se confrontam. para além dos copos três envelopes brancos. no fundo contraste uma disposição cuidada sobre a mesa. o reflexo de um selo branco. três homens frente a frente uns com os outros. sem confrontos entre si. bebem devagar. e nunca dirão que estiveram ali. de relance um deles afasta-se primeiro. leva um envelope consigo. dos outros dois apenas um aparenta mais resignação e tolerância. até que o outro se levante também com o seu envelope por abrir. ouro. a regra do silêncio. prata. só depois daquela porta eles poderão saber o que os espera. o que fazer. o que tem de ser feito. a curto prazo. bronze. não há volta a dar. nem possibilidade de recuar. o terceiro homem aguarda que os outros se vão embora. dá o último gole num gesto único. Abre o envelope. fecha-o. depois é cada um pelo seu caminho. sem remorsos. ouro prata bronze. só um deles permanecerá vivo depois de tudo. a roleta russa. qual deles o gatilho qual deles a bala qual deles o disparo. Só um ficará são e salvo.


segunda-feira, 26 de abril de 2010

o lado de lá do laço (ou dois tons para a mesma cor)



um dia a meio da noite um sobressalto. quando ela começou a enjoar. quando dificilmente se mantinha de pé. quando ela tremia dos pés à cabeça. quando já desconfiava. quando aconteceu. quando ela terminou com a dúvida. quando já sabia. quando ela sempre soube. quando tinha a certeza. quando ela teve que fazer tudo sozinha. a incógnita do teste. o resultado do exame. quando decidiu não contar a quem quer que fosse. quando ela gritou. quando depois chorou nas primeiras semanas. agarrada à sua fragilidade. num abraço sob si própria. sem vontade de comer ou falar. teia de insónias. quando ela ficava encolhida no chão de pernas cruzadas. quando em silêncio. o telefone dela tocava. quando não atendia. quando o telefone tornava a tocar. quando ela arrancou esse fio da parede. e já nada se ouvia. quando ela mantinha uma certa tristeza. muito tempo antes. depois de uma noite. ela pensou. quando passava dias e dias fechada em casa. quando ela tomou a decisão de continuar. quando deixou de lembrar e esquecer. quando ela aceitou. o tempo. um dois meses. quando riscou o terceiro no calendário. o quarto e o quinto. quando ela ao sexto sonhava. quando ela imaginava como e já riscava a vez do sétimo. quando ela contava o tempo que faltava pelos dedos. oito. um a um. nove. quando chegou a hora. a ansiedade dela. e a pressa dele. a água o sangue as contracções o brilho dos olhos. quando ele tão pequenino. ela sorriu. novamente. muito tempo depois. quando não são precisas perguntas nenhumas quando se é feliz. quando ela se abraçou a ele ao adormecer no seu colo. as duas respirações juntas. o cordão o umbigo. por um fio. o amor. o único por último e por fim.


terça-feira, 20 de abril de 2010

o ofício dos fósforos (ou o tempo todo)




tem setenta anos. talvez mais. Veste um fato cinzento muito desbotado. comido pela traça nos colarinhos e três botões mantidos por um fio. as bainhas envelhecendo com ele. junto a um dos bolsos do casaco, um buraco. ferida cozida a quente, por dentro. entra no café contando histórias. de ironia e mágoa. histórias de tempos antigos que não há já quem seja desse tempo. cicatrizes. porque é a vida que fica para trás com demasiados sonhos pelo caminho – diz ele. numa primeira combustão. o barulho vindo de uma pequena caixa. como se alguém soubesse. um segundo clarão. e uma prega virada do avesso. lá fora na rua, trânsito e respirações. faz-se um silêncio breve e novamente uma fogueira a nascer-lhe entre mãos. O ano passado o coração quis parar que já nem posso embalar o meu neto ao colo. diz com tristeza. senta-se forçosamente. fica curvado com os olhos muito distantes. há um autocarro que passa com gente dentro. uns rapazes que atravessam no sinal verde, a rir alto. uma senhora de bengala arrastando-se do lado de lá do passeio. um curto silêncio. é a vida com demasiados sonhos que ficam para trás. que partem. há-de alguém pensar. e no fundo um enorme vazio sobrando-lhe no corpo. como se alguém pensasse. O que lá vai, lá vai – suspira. levanta-se de repente. penteia o cabelo ralo, branco. observando para fora de si. olha para o céu e lê-se nos lábios um rumor. guarda o pente na serenidade de quem nada possui. talvez a inocência seja o doloroso abandono. paciência. é vida. não é assim? o último dos fogos em vias de extinção ou a trémula sombra que se vai apagando . ponto. mas o que será pior: a dor da velhice ou ter que morrer? – pergunta. uma breve pausa. ninguém sabe. não é assim? sem dúvidas nem certezas. tem setenta anos. ou mais. ainda a sonhar. como que a desaprender de contar o passado perdido e a assobiar ao futuro que resta.

terça-feira, 13 de abril de 2010

da soberba neblina (ou a finita mortalha de papel)



um homem que surge. senta-se e espera. fala sozinho. fuma prolongadamente todos aqueles gestos com a boca. não lê o livro que traz fechado nos braços. e ao falar sozinho só para si é como se não existisse. casualmente agita-se um pouco. parece nervoso. a inquietação é sempre invisível. move-se numa contracção instantânea, acústica. a espera é isso mesmo. na companhia do desassossego aguentar, persistir. e não existir. a originalidade do rosto, agora, para surdos e analfabetos. o olhar fixo, concentrado. pensa através de fumo. de cigarros múltiplos. uma mão sobre a cabeça. as mãos. as mesmas que apelam ao empregado de mesa. o pedido, pela primeira vez. que o empregado traz. as mesmas que concedem a fuga e a permanência entre um e outro. os poros, suor e tabaco. a mão segurando a chávena. as mãos. as mesmas com que, por fim, o homem paga o ócio em meia dúzia de moedas. gastas. sem esperança. de esperar. o empregado que as recolhe num esquisito tilintar. e depois nada. obrigado. as mãos de um levantadas no espaço de costas voltadas do outro. o homem inesperado. o empregado. perplexo o homem que deixou de esperar. desiste. não sabe porquê nem quando. torna a falar sozinho. palavras sumidas e desta vez, sem troco. não tem de quê. nem como.

a meio caminho (ou o ser nunca inabitado)



havia a rapariga que tapava os ouvidos enquanto caminhava. a direito, sempre tão amarrada aos pés, o peso dos ossos na vulnerabilidade da pele, hermética numa distância de sinfonia na sempre igual variação. saía pela porta. o vento a dançar à margem dos auscultadores. as chaves na mala e braços caídos. a direito, ao longo do imenso passeio. não chovia. nuvens depois, começa a chover. uma chuva miudinha. e a rapariga com os ouvidos tapados não ouviria se por ela chamassem. porque também o seu nome não se pode chamar. não há quem o diga. ela continua. e assim foi. segue. e é assim ultimamente. assim será. passo a passo. e quando não houver quem a veja é porque a rapariga no afastamento dos outros, sem direcções sequer, se aproxima cada vez mais do seu pautado regresso. na cadência do caminho. passo a passo. ao som de um blues que o deixou de ser num dia mais ou menos normal. e nenhuma voz. sílaba ou paradeiro nem identidade. vem. até mesmo que não haja hipótese de voltar atrás. deixa de chover. e dela não há sinal.



domingo, 11 de abril de 2010

o anjo recortando asas (ou o voo frenético revelado)




acorda e nem se levanta
com o sol a bater na cara
encoberto início da lenta

manhã

nuvens baixas de rasante
nevoeiro entre as cortinas

a corda esticada até
um violino cansado

e todas as ruas ali
repercutindo perfis
pessoas e o mundo

ali mesmo o dever
a necessidade e o
porvir displicente

despertar dos olhos
caos de quântico azul

alinhar a ponta solta
e existir inteiramente


génese sem algum tipo
de mutação inverosímil

indesejada a imprevisibilidade
quando respira tão brevemente

e mais ainda suspirando

em tiras espessas de tempos
inúteis alagados suores e

afrodisíacas transpirações
a pedido de lágrimas sem

nome

uma excitação inesperada
nomeando noites do seu

extenso caudal que se atrasa
ao redor das veias pulsando

o corpo todo

talvez ao escapar uma
iluminação sorridente

estranhando porém
o desenlace levado a
cabo trazido de dentro

guardando tudo
lembrando cada
coisa

porque

todos os espelhos são
um a um nenhum

retrato

memória nenhuma
irreversíveis vozes

o tempo sempre passa
como um passatempo

hábito diluente
recado invulgar

às vezes

é aquele tiro dado no escuro
sem se conhecer onde pára

desferindo o humano golpe
antes de cair sobre a água