segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Na vez dessa palavra que não digo




Lá fora, a rua vai-se encolhendo para as margens do passeio. Invadindo-se de riscas desenhadas no alcatrão e luzes verdes amarelas e vermelhas, sucessivamente.


Há quem avance - e não poderá regressar. Há quem abrande os passos - na incerteza de ainda. Há quem pare, finalmente - porque o tempo acabou. De todos, o que mais me comove são os olhares reluzentes, intermédios que muito pausadamente se vão fechando. E há nas suas pálpebras uma emoção que poucos compreenderão.


Lisboa arrefece. No céu de Lisboa, as estrelas escondem-se de quem as procura. Iludem quem as pensa observar - brilham continuamente, e enganam o olho a nú da palpitante visão. Está frio, minuto atrás de minuto. E é neste Inverno de silêncio que Lisboa se prepara para partir. Sem nada que a impeça de


Tudo o que deixar para trás, será brancura. A música e as lareiras acesas. Serão faíscas brancas roubadas ao fogo.


Em volta, os jardins escurecem-se de folhas húmidas e de troncos repartidos. Sonhos, desejos - a esperança infinda. Raízes que se dobram na Terra, contorcendo as palavras juntamente com a poeira


[ a poesia ]


o húmus terrestre de ambições e ansiedades que pouco a pouco vão escavando a sua morada.


A lua atinge branca a superfície com um só esvaecimento. Em Lisboa mantém-se o gelo. A geada e o granizo acordando em sobressalto nos telhados, repentinamente. O murmúrio desliza estreito na sua face. As rugas tomam forma de rios e os vales montanhas - na transição dos ponteiros para o norte - são um abatimento de diásporas e tempo em que o tempo parava - em que o tempo resistia e tudo era esse tempo (im)possível.


Cada vez mais - na hora.


Outrora no sul. Cores e cinzas, nuvens cinzentas de água transparente. Exuberantes as imagens que a antecipação e a alva, rebobinam e mostram Lisboa


de pé, quase paciente na sua - sempre - última cerimónia


[ na vez dessa palavra indizível


adeus ] que não digo:


o meu rumor de braços e mãos, de corpo que é o que sobrevive agarrado à ponta da cortina que cai. Coberta e cheia de Amor. Atrasando os relógios para o reinício o começo da odisseia. Hoje e sempre.

Lá fora, na rua, Lisboa é o presságio, a metamorfose. Branca, carinho cidade, réplica de regressada ternura friamente quente.

A quantos estaremos, amanhã depois desta noite?

[ tic tac ]

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Limbo






Escrevo-te

a sangue. S a n g u e – essa substância proibida na hora

de uma faca apontada ao coração.

E habita em mim – porventura a mancha que omiti.

Era tudo até ao limite. O tempo estreito

e o lugar incompatível com o espaço.

- Quando foi a última vez que aconteceu? Ou a

primeira em que assim estivemos?

Era o limite em tudo quanto causavas «na sua dilatação

pensar, para não te esqueceres».

A lâmina num acto de alienação avançava certeira «como um grito

finalmente audível. Não posso mais

Os pulmões rasgados de tanta ou tanto

[Incapacidade]

ar comprimido finalmente respirável um êxtase

«quero que desapareças de mim». Dos pés à cabeça

a gravidade entre dois – que excessivamente

impele e balança

«talvez seja tarde para recomeçar. Para refazer o que se desfez».

- Mas saberíamos da despedida de outra forma?

Dois pesos e duas medidas. Agora ou nunca. «Tens a tua

oportunidade». A segunda

num segundo. Um instante só. A minha vida nas tuas mãos. Ou

a tua vida com a falta da minha. Queres?

Escrevo-te. A nódoa que tinge o abismo [entre nós] que fomos mortais.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Poema II



Hoje,

nada de metáforas. Nada de palavras crentes, senão

[unicamente o ventre em que a palavra brota de dentro.

Incansável, a meditação e a melancolia de cada sentimento

[desperdiçado.

Pensante, e muito pausadamente a emoção nomeada. Dissecar devagar

As vezes, inteiras, em que chegavas de ti e não querias partir. Porque

Nunca soube se virias para ficar.]

Vão os dias em que a membrana que nos reveste

Era a premonição de uma demora invisível. Desmedida.

Permanece o brilho da chuva sobre os passos.

Detêm-se os perfis da letargia de momentos solitários.

Hoje,

[no útero da solidão, uma sentença e um castigo.]

Inútil deixar o contacto. Infrutífero permitir o toque. Vão:

O mesmo coração não nos cabe.

Pertencemos ao passado e somos feitos de matéria morta.

[a impossibilidade que alimentamos é mera e exclusivamente

Um bafejo que passa de uma boca a outra sem som.]

E há na totalidade dos gestos uma mudez. Um uso cansado.

A consumação de que nada pode justificar o golpe e a sonância de ter que

[nascer, novamente, em outros braços num corpo distante. Porque

Já não nos conseguimos lembrar e ter a certeza de o termos feito.]

Hoje,

Será tudo o que fizermos.

Para sempre, uma resistência consagrada no interior dos muros

[a cal

da eternidade.]

domingo, 2 de dezembro de 2007

Mais de ti que do(eu)


Separados no tempo, como duas cicatrizes demoradas, em linha recta tombavam os olhos entre si.

«Curvada sobre a vergonha expunhas a tua altivez demonstrada através de mentiras que eram palavras não tuas. Nunca tuas, essas que não se escreviam nos teus olhos afogados nem na tua cabeça oscilante, muito menos no teu pensar palavras as que da tua boca me mentias. Embora triste.»

- Porque não aceitas a verdade?

«Porque há um adeus adiado em cada signo. A cada ferida uma angústia lenta. Palavras são que não concilio comigo. Nem na tua presença. Porque atinges-me no silêncio e no pesar de te dizer uma mentira que seja.»

- A verdade? Mas o que será que isso foi?

«Perto do abismo caio sempre da mesma forma como se me empurrasses, desamparado, para o interior do mundo. Mundo - palavra que desmente o carácter do que antes se perfilava nos canais do justo engano de te ter dito Amor.»

Na distância, conheciam-se há muito.

«Redescubro-te. E encubro-te. E hei de te guardar inevitavelmente dentro do peito, em jeito de fenda que se abrirá quando te chorar ao adormecer.»

Mormente, alimentavam o fosso e o peso dos corpos com a violência de quem se perdera.

O reencontro?

«Sou todos os dias em que me ignoras. Em que és uma distância intocável. A cortina e o pano, corridos, um vácuo de esperança que avança penitente em cada um de nós.»

Retoma-se a incerteza: O reencontro? Ao recontro entre si:

«És a minha hesitação. O meu lado escuro do luto. Sem medo porque só me atormenta esquecer-te. Não sei se alguma vez haverá um fim (se final existe) – somente uma luz que treme e se despe de longe.»

Dá-se uma volta na invocação do espaço. Batem-se os pulsos na rotação do próprio movimento. E a face de um entorpece a sua mesma figura.

«Sonho e pesadelo. É o nosso paradigma. Preferia desconhecer o rigor dos nossos trajes. Das coisas que aprendemos. Da exactidão e da extrema força que absorvíamos juntos. Enfraqueceste-me. Quebrei-te. Eu sei…»

«Tenho em mim a invisibilidade do teu eclipse. A absolvição de todos os teus erros. Quero que saibas que sentir-te-ei contínua e transversalmente, no coração cerrado e na alma encerrada. Tu.»

Invasiva. A dor indolor alastrou-se e derramou-os. Em paz.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Poema I


Manhã submersa,
Perdido de ti que me revejo.

Espasmos de tristeza que são
os lugares em que não estás
- onde habitas?
senão no coração, ao vento
soprando a dor sob a porta.

Nos primeiros raios do dia,
entorna-se o destino naufragado
na brevidade do mundo
- na palavra frágil que escapa à deriva.

Manhã emersa,
que origina a promessa e o carvão
dos pensamentos atravessando a fronteira
daquilo que a memória me recorda:

Convences-me sempre.
Mas não me vences, ainda perdido.

Há tão pouco tempo para gostar de ti.
Para me gastar em ti.
Para ti todo o meu tempo restante.

Como se a vida fosse a fibra que puxo
sem forças já – neste instante
convencido de que na pétala do silêncio
hás-de nascer secretamente, tu
alvorada humildemente escura,
por do sol, de volta.

Absorto
[ acaso o sono tivesse abrandado a vontade

Não me esqueço de ti.
E sou quem há-de deixar a vida primeiro
menino e ingénuo, novamente ]

Dolorosamente só,matinal.
Ferida sem cicatriz, incurável manhã
submersa e emergente
em tudo o que me urge:

Ao crepúsculo surges devagar.
Contra o cristal:

és a única hora do espelho em que sei que estou vivo.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Outono


Vazio. Sentado na cadeira à espera dela.
Para que chegasse nem que fosse ao fim da tarde, no final do dia.
Esperar.
-
A angústia daquele silêncio.
O silêncio e o fumo que se entranhavam horas a fio.
E ela, sem aparecer.
-
Esperar. Vazio
e completamente só. Sentado sobre as pernas que queriam correr,
sobre os momentos que queria ir resgatar.
Sobre os braços, e nas mãos, o vazio deixado no seu coração desabitado.
-
A ausência dela na sua vida era o seu maior desespero.
À parte, ficar sem ela sem a ter tido. Sem si próprio. Mais:
a alegria figurava-se num pequeno rasgo de luz, despedaçado
nas sombras aparentes, inexplicáveis por palavras - infelizes.
-
A falta que lhe fazia, ela.
Vê-la transpor a porta do lado de cá,
entrar e abraçarem-se longamente.
-
Mas, secos os olhos de tão desejada visão
sobravam as lágrimas molhadas no leito da noite.
Restavam insónias. Dormir sem sono, acordado
por cada gota de chuva que desejaria beber.
-
Sentado,
no vazio da espera - fechando os olhos por vezes -
esperando ser ela a primeira imagem além do visível,
do lado de lá a acenar, sorrir
a duas bocas o que um beijo um dia construiu.
-
Como se fossem duas raízes:
uma a pertencer à Terra
outra
a erguer-se no céu. Na queda de um anjo
no brilho cego duma estrela etérea. Sublime e imprevisível.

domingo, 11 de novembro de 2007

Carta num resto de tinta do amigo [o]culto


"[...] O poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido [...]"


in A Criança em Ruínas, José Luis Peixoto

Escrevo-te, amigo, ao princípio duma manhã de Inverno. Coberto pelo frio da rua numa janela aberta para fora. De dentro, apenas este pensamento longínquo - embora denso - de que possas perceber como a temperatura e o gelo estão sempre demasiado perto.

Começo por dizer-te, amigo, porque te escrevo. Porque digo amigo em vez do teu nome. Porque o teu nome só serve para quem o chamar, e neste momento, o silêncio e a inexistência da música calam toda e qualquer descrição que tenha a ver com o barulho das vozes e das palavras. Escrevo-te, na beira do cansaço interior. Sentado sobre as rugas do meu crescimento e da forma que encontro para manter-me jovem, sem mácula, perante a dimensão da idade. Inocentemente.

Ainda és novo. Tens os medos e os tormentos próprios da tua insegurança. Quase que podia dizer-te, amigo, que te escrevo para que um dia mais tarde sejas capaz de agarrar a raiz do medo na palma das tuas mãos. Mas não. Por enquanto, por agora. Hás-de lá chegar, num dia desse futuro que presentemente desconheces.

Sim. É importante que vivas em primeiro lugar, o antes e o durante. Lembras-te? A vida tal e qual como ela é. Os riscos que envolve a descoberta, o grau de coragem e humildade necessárias para que possas futuramente, amigo, fazer como me disseste - da tua geração, melhor do que tu. Recordas-te? O mesmo seria como se daqui a uns anos estivesses a ler aos teus filhos um epílogo que escreveste outrora. Haverás de desejar que eles sejam como tu e algo mais. Trabalhores do intelecto e do inteligível Ainda melhores que tu, amigo. Sem falhas na educação que lhes quererás dar. Na noção de mundo que lhes transmitirás. A porta semi-trancada. E

um cigarro acende-se e o fumo deambula perdido entre quatro paredes. Reconheço-te. Sei que se te perguntasse alguma vez - Qual é a cor da Terra? - possivelmente irias abrir o teu bloco de capa preta, e com linhas azuis irias escrever - Que textura tem um fio de cabelo? De todos aqueles que deixaste cair nas mulheres que conheceste, nas que amaste há muito e nas que ficaram para trás do caminho. Hoje, amigo, Inverno em que caminhas à procura dos passos em que foste esquecido. E eu te memorizo. Os erros da infância e da adolescência que matavas, quase, num gesto físico de arremesso de músculos e raiva. Todas as experiências em que te envolveste, essas, batalhas dum corpo frágil e rebuscado em direçcão à sapiência - o mais possível.

Escrevo-te, amigo, e poderia dizer que sei quem és e te conheço. Mas o que haverá para encobrir? Que necessidade tem a poesia de referir o mistério, ao invés da crueza duma só palavra. Só - de solidão, por exemplo. Dó, de música. Um aglomerado de acordes acústicos e eléctricos, num conjunto de vozes e gravidade sonora. O metal. Tal como o alumínio daquilo que expressas. A ferrugem de fonogramas que compões dentro da tua recôndita parte. Infimamente, como se pretendesses escrever na posteridade que o teu processo mental são letras que se corroem e desfazem noutras tantas que renascem, por outras palavras. Serás o sábio sem sabedoria? Ou a sabedoria do não-sapiente? Serás o bicho dos pensamentos e reflexões, escondido por entre a sombra? Porque vives na sombra de dentro de ti. Porque a tua sombra e tu são uma só pessoa. Alimento e simbiose. Um ser regente de actos sinceros e movidos a impulsos de te libertares daquilo que nem tu fazes ideia.
Pergunto-me, abstracto, o que é a vertigem. Estar perto de resvalar pelo que a seu tempo deverá ser revelado, e no entanto, perder as forças para segurar a hipótese de morrer sem levar da vida o sabor do passado. Acharás que cada um enlouquece à sua medida e à sua velocidade. Talvez, penses que o que faz do rosto uma imagem seja apenas o seu aparente contorno. O conteúdo, revejo preciso, das conversas que não tinhas com ninguém. Dos diálogos metafísicos em que dizias do teu tom aquilo que queres e te apetece. Tu, amigo, que prolongas a autenticidade do real face ao imaginário.
Tu, que ilusoriamente desacreditas da Humanidade na sua extenção fútil de um marxismo moderno na era do imediato. É a tua convicção que lhe dá força: Sem que nada atravesse a pele e chegue ao sangue, acrescentarias.

Eu, amigo, que te escrevo para concordar contigo que os espelhos também mentem. Que há mentiras que são corações esculpidos num momento de ódio. Sem amor. Completamente vazios.
O que terá, então, a mentira a mais que a verdade? O simples facto de ser astuta e um sinal de uma retórica pungente que trespassa todo e qualquer vestígio do que realmente significa. Eu, que me limito a escrever-te, amigo, em forma de desabafo, de cordial compreensão num impiedoso fôlego - um suspiro, digamos - inconscientemente consciente do alheamento real.
Eu, amigo, que torno a concordar contigo nas solarengas maldições que tardam em desaparecer cada noite e madrugada que resta. Ela está sempre sentada na cama, em espera, de pé em frente das paredes brancas. Sobre ti, a carregar a vingança de seres poeta e pensador - em simultâneo. Ouviste bem: poeta e pensador. Toma atenção - é o fardo que te acompanhará sempre que avançares ou recuares em qualquer que seja o seu sentido. Ainda que renegues ou rejeites os rótulos e as identidades sucintamente banais, neste caso, é o peso da tua existência. Aquilo em que te tornarás, penso, em breve e que jamais se separará de ti. Amigo, escrevo-te na razão inglória e espero que para ti, não insuficente, que venhas num futuro de hoje mesmo, ou um dia depois, a ser "poeta" maior. Ou melhor, a sê-lo continuamente do tamanho daquilo que vês.
(A)Nota que a vida é um limite entre o que se faz e tudo o que nunca provaremos. E tu, tão certo de que a vida só se vive uma vez, o que podes explicar da amargura? Do beijo a azedume daquela que não apagas da memória e que há muito tempo lhe tiveste vontade de dizer olhos nos olhos que lamentas. Mais por ela e não por ti, até porque a capacidade de amares novamente é a mesma, desproporcional ao que ela nunca mais terá. Com ninguém. Houvesse outra hipótese para ela te aceitar. Nunca mais.

Espero que não leves a mal, mas - quero perguntar-te: de que forma nos tornamos humanos e desumanos? Tenho uma lembrança de me teres falado disso num texto que já escreveras. Apenas não sei que resposta representa a fidelidade do que me vou tornando. Estarei errado ou poderás tu esclarecer-me?
Escrevo, amigo, para me confessar: na simplicidade de que tudo o que acontece à minha volta, retorna do mesmo modo que a espuma de uma onda se absorve na areia mas fará o mesmo trajecto noutro mar. Para mim, é este o primeiro pensamento que me vem à cabeça quando reflicto e me conflito entre o antes e o durante deste momento. A pendência com que se suspendem as horas na escrita esvaída e corrente, é a minha incidência e reprodução de me reduzir perante o que me ensinas. E ensinaste.
E no entanto, bate-me na consciência a robustez de cada esperança elevada que sossego neste monólogo. Escrever-te-ia, amigo, de um outro formato ou configuração este proémio-poema, acaso o sonho e a ansiedade de que me ouças se dessem ao sacrifício de se unir. Seria mais fácil poder auscultar num instante de paz, que os meus dedos memorizam as coisas que sabes melhor do que alguém. Até do que eu próprio.

Dou voltas e mais voltas à massa encefálica que me corrige o devaneio, e falo-te do agradecimento e do que encerra a minha estadia terrena. Os meus arrependimentos, receios e variações, as divagações, ainda, os assuntos delicados do que se emerge diariamente. Deves calcular que não preciso de te escrever, amigo:
Obrigado.
Mas reforço o ideal de que serás um viajante do norte e do sul, nos meandros do percurso que traças com a absorção do este e do oeste. A poente, todos os pontos do eixo cardinal da bússola que te entregaram à nascença. E complemento com a nobre agitação que transbordas. És um sopro inacabado. Um livro em aberto sem final à vista. Tu, que ainda novo, sentiste a tua vida do avesso e recomeçaste. Derrubaste dogmas e paradigmas. Reconstruiste uma parte da história através de encontros e desencontros. As tuas paixões que terminaram precoces e os amores entregues que tristemente foram uma desilusão. Irreversíveis. Lembras-te de cada face turva que abraçaste ou de cada silêncio que calaste? Afinal, para ti o amor é quanto baste. É por isso que te recolhes e te remetes a redigir sozinho. À margem.

Escrevo-te, amigo, de parte incerta no espaço mas ciente de que passarão muitas gerações a seguir à nossa, e que mesmo depois de termos fugido haverá quem perpetue o pecado e a perfeição, as marcas que hão de perecer quase no fim. Muitos serão os segredos deixados nos corpos dos homens e das mulheres que se cruzarem numa esquina, numa chávena de café. E sem películas se hão de materializar em nostalgia entranhada nos dias de Inverno, como este, em que o sol espreita as nuvens, tangentes. Já viste como a poesia é uma encenação pura da mente humana? - a essência de tudo o que é verdade.

O poema. A epiderme que o envolve. O toque que antecede e precede o tacto. Já reparaste na complexidade que o poema decifra? Imagino se estivesses a ler o texto ao contrário. Tentando ajeitar cada vocábulo no seu sentido primordial, independente da ordem e do caos com que foi escrito. Irias testar a espessura da carga do poema, revitalizando frases e pontuação, nessa tua postura de ouvinte curioso em que cerras o olhar e fixamente observas o centro do organismo poético. Por todas as vezes que paciente me escutavas, atrás de cada cigarro sucumbindo demoradamente.

Pelos conselhos, pelas frustrações indulgentes a descerem até aos ossos. Pelos recíprocos ecos que compunham a tua voz. A sobreposição à minha voz. A diligência e a solidariedade. O saber.
Escrevo-te, amigo, já sem palavras. Sobra-me o vácuo que se adivinha no brilho do vidro, verticalmente colocado para o exterior. Superfície que destapa o âmago, as vísceras e a profundidade do lado oculto das nossas locuções. Mensagem transversal.
Páro. Findo. Extingo a combustão com um semblante por uma tentativa. A de te escrever, amigo, para que não abandones os objectos e as coisas irrealizáveis. E não sejas abandonado, igualmente, aos sonhos concretizáveis. Para te confiar. Guia-te pela magia do inevitável. Perfura, rompe e transpõe o pavor das folhas em branco que acredito que não deixarás de amar.
Amigo.

Numa última remanescência encoberta de pó. A tinta negra.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

O não escrito




Ao X.y.u,
pela amizade construída nos laços da escrita.
Verdadeiramente.





Que se torne indomável o ritmo cardíaco,
Que caia nas cinzas do que outrora fora
O meu trono. Teu!

Que ao som libertino,
…desregulado
de uma dança vazia
caia mais uma lágrima…

cloreto de sódio
deslize salgado rebentando ininterrupto
pelos caminhos inacabados.
Porque serão as lágrimas,
valsas contínuas e dispersas?
Em tantos olhos
em tantos suspiros?
ah, como são distinguíveis
do mais ínfimo gesto.
como são perfeitas
na sua melancolia.
Mágoa. Essa dança vazia.
Vadia.
Fujo e estalo os ossos no sentido vago
da evasão:
diz-me porque dizes não.
Porque queres que sim
mas,
ao fim ao cabo não te posso
fugir mais.


sem
Fôlego
quase sem amor...
praticamente tão só como da primeira vez.

tão poeticamente sincero
e sentimentalmente longo.
As portas invisíveis a fecharem-se de encontro ao desgosto

porque o verbo condensa todo o afecto.
E o medo.
A ruina
De um desejo de utopia
Sem errar contigo.
a ruina.
rápida e feroz.

Sombra negra que atravessa a brancura
do rosto manchado de tristeza.

Como é interminável a dor...neste
- intervalo doloroso.


Escrito a duas mãos.
Tiago - Celso

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Pensamento II


Aquele era o último beijo
do primeiro homem
do resto da sua vida.

Antes
pensara: Porque é que as pessoas se aprisionam?

Naquele instante
uniram-se e separaram-se.
Num momento
foram uma parte partilhada.

Em silêncio,
e muito devagar.

Ele nos seus olhos
disse:

E se o mundo fosse mudo?

Não houve despedida.
Anos mais tarde

deitada,
finalmente obteve resposta.

Quando muito suavemente adormeceu.
Quando se libertou. O corpo caído na cama do seu lado vazio

e a marca de alguém
que vivera eternamente.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Efeméride da claridade



Pontos luz desenvolvem-se à minha volta.
E em redor da tua sombra
manifestam-se à velocidade com que me questiono.

Acendo a luz e desabafo um primeiro suspiro na tua
ausência.
Faz hoje muito tempo desde que te foste embora.

Saíste por aquela porta clara
no teu vestido preto de seda nos teus olhos
a despedires-te de mim intranquila.

Apenas uma pequena mala na tua mão direita.
Na esquerda o teu pequeno vício que
mantinhas nas horas solenes.

Hoje sinto-te à distância. Nos feixes luminosos
que circulam devagar na minha cabeça.

Serás feliz?

Às vezes gostava de saber porque razão
abandonámos tudo. De perceber
o motivo que nos afastou e nos devolveu
às nossas vidas anteriores- as mesmas que ferimos ao sol duma tarde.

Quando nos conhecemos
tu eras o dia eu a noite
mas interrogo-me senão terá sido desde sempre o contrário.
Eu o dia tu a noite o sol

e a lua como tu dizias- o veneno um do outro era para bebermos a sós, ao luar.

Nesse espaço de noite
que tanto gostavas por sermos mais dois desconhecidos, somente.

Do que será que nos esquecemos?

Entre -tanto, depois.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Cinestesia



O coração muda a cada hora que passa. A aorta bombeia o sangue que nos une e nos junta. As águas separam-se e a respiração diminui-se. Todo o tempo que amamos alguém é um amor demasiado velho. Dias, meses ou anos. Pode durar apenas um segundo e com um pouco mais, um minuto numa hora. E o coração muda ciclicamente.

Quem és? Quem sou?
Em que nos tornamos?

Às vezes há tudo. Noutras não acontece nada. Não há nada, senão uma voz. Um conjunto de palavras memorizadas. Uma nostalgia que deciframos no sentido do movimento e do toque. Tristes caracteres que entristecem o mundo, contornando a vida nos seus momentos de lucidez
acostando o coração ao invés do conforto e da evidência. Aumenta o ritmo cardíaco. Faz-se uma certa constância na cinestesia essencial
junto ao tórax um aperto leve, e desapertado.

Um, dois, corpos lado a lado. No horizonte. Tombados como duas formas de água.

O silêncio diz-se. Ouve-se. Escuta-se e é audível. E no ar
paira uma turbulência de uma bonança intacta e guardada pacificamente com todo o desassossego impossível.

Sou-te. Tu és-me. Somos

gotas. Um ciclo de círculo, embalado pela marés que dantes se bebiam nas tardes quentes e nas noites em que um de nós partia antes do outro.

E amorfamente, por vezes descansa imóvel à beira dum estado líquido em que nos finge do seu abandono. O coração

bate, palpita. Na inevitabilidade da vida.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Cera



Arde acesa uma vela,

de espelhos, luz banhada inerte

E intensa.

Há algo que se evapora

e que se consome.

Repousam as estrelas

e numa temperatura branda,

a Lua foge brilhantemente.

domingo, 9 de setembro de 2007

Mercúrio



As palavras ardiam na folha.

Uma a uma, colidiam com a ponta dos dedos
e desfaziam-se entre si numa mancha de fogo.

O sentir queimava-se nas margens.
do riso, lume.
do olhar, labareda.
do silêncio, chamas.

As palavras consumiam a tinta.

a noite intocável era uma cortina clara,
amarela e vermelha e de contornos acesos.

O poema debatia-se como podia.
à vez.

O silêncio, e o riso dos olhos
a palavra quente e um brilho de cinza.
ou
o cheiro seco da pólvora.

As palavras ardiam na folha
por dentro,
e em segundos que o tempo não contou

uma vida inteira se extinguiu por entre

rios e marés
que lentamente arrastavam pequenos pedaços brancos,

de cartas que nunca foram lidas
e poemas que nunca foram escritos.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Verba volant, scripta manent



"As palavras esvoaçam, os escritos permanecem".


Ela tinha-lhe dito: Não me perguntes onde estive.

E saía sempre de casa a uma velocidade impossível de ele a acompanhar. Antes ficava, impávido no sofá que compararam os dois quando se mudaram para aquela casa, de cigarro na mão e de olhos vazios. O estrondo da porta era o mesmo desde que se tornaram dois desconhecidos debaixo do mesmo tecto.

Mas nem sempre foi assim.
Quando se conheceram, eram os mais apaixonados do mundo. Traçavam sonhos e projectos de futuro, com tal força, que dir-se-ia que não se haveriam nunca de deixar de ser um e outro. Tinham gravado no rosto as mesmas palavras e nos gestos os mesmos movimentos impulsionados a dois. Eram um, apenas. E os dias, para eles, eram de uma cadência só ao alcance dos que se permitem sonhar.

Depois, o tempo revelou-se. As noites começaram a tornar-se mais cinzentas. Conversas antigas disparavam raiva e amor-ódio pelos cantos do quarto, da sala, à hora de jantarem juntos - que foi sendo cada vez mais raro - até que um dia ele lhe perguntou:

Queres ir-te embora?

Ela não respondeu. Não lhe deu nehuma conclusão concreta. Fugiu à espada e deslizando parede abaixo, chorou.

Ela não chorava. Parecia que não haviam lágrimas naquele corpo, fosse o que fosse. Acontece o que acontecesse. E ele sabia que isso não era insensibilidade dela, mas a fórmula que encontrara para estar em defesa do seu íntimo lugar de sentimentos roubados e de uma inocência perdida. Foi essa a característica que o levou a aproximar-se e a tratá-la como mulher. Foi o modo como se chegou perto sem quase lhe tocar que fez com que ela se apaixonasse. E nem no primeiro toque ela chorou. Por seu lado, ele sorriu.

As vidas deles sempre foram marcadas por muitas mudanças. E naquele preciso instante em que ele a confrontou, uma mudança ocorreu. A sua voz ficara presa na garganta e por mais que quisesse ter mentido, e dizer-lhe que sim, não foi capaz. E imediatamente ele tentou abraçá-la, perdoar-lhe os últimos esboços a negro da sua vida, e aceitá-la como fizera dantes. Ela retraiu-lhe o afecto, desculpou-se pela corrosão a que estavam sujeitos e pediu-lhe que mudasse. Que voltasse a ser o rapaz que havia conhecido a anos-luz daquele abafamento em que se encontravam. Porque ele a fizera sofrer desde então, e por consequência ela não queria assumir a culpa e a derrota sozinha.

Ambos se perderam. Ambos apostaram e pouco ou nada lhes restou. A vida é demasiado inteligente nestas coisas. Ela disse-lhe então:

Não me perguntes onde estive.

Ele, cansado e vencido por fora, debatia-se por dentro. Todos os dias a via arranjar-se e desaparecer num impulso, para lá do abrigo que ambos construíram. Sabia que aquela já não era a sua mulher. Pressentia que já não lhe pertencia como homem. Como amigo. Nem tão somente, seu companheiro de outras batalhas. Todos os dias sentia-se cada vez mais sem armas para resistir. Seria necessário?

Não me perguntes onde estive. Cada palavra um arremesso no centro do estômago. O estrondo da porta a fechar-se sempre igual, o som agudo e grave a entoarem-lhe nos vestígios de uma memória pouco clara e nítida.

Ultimamente sobrevia na insegurança da noite. Á espreita dum deslize qualquer que justificasse que ambos não estava preparados para partir. Sem nehuma esperança. E foi numa dessas madrugadas, insane, que rumou ao carro e acelerou para longe. Queria afastar-se do local do crime para sentir a necessidade de voltar mais tarde. Queria a saudade a nascer outra vez.

Chegou ao destino improvável em meros minutos. Saiu e encostou-se à pedra do pontão. Era inverno e ele acendeu uma luz no frio. Fumou todo o seu passado recente naquele cigarro. Contraiu os pulmões para dentro como se preferisse renascer no ar respirado. De mãos nos bolsos e em silêncio arranjara uma derradeira fé de ir ter com ela e recomeçar.

Ela demorou menos que o habitual. Apesar de todo o ritual e de uma liberdade imposta por si mesma, sentia-se estranha. O amor reclama sempre a sua presenças aos amantes. Não aguentou o estar rodeada de pessoas, as conversas circunstanciais e o cenário colorido de bares e locais que para ela, nessa noite, animação alguma lhe tinham causado. Deu por si a pensar nele. O quão farta que estava de arrastar uma possível ruptura. Que não queria, no fundo. Porque não estava preparada. Porque não queria.

Chamou um táxi e indicou a morada. Pediu ao motorista para ser rápido. Para o que desse e viesse, tinha uma súbita vontade de se abrigar perto dele. Nos seus braços.

Chegou. Pagou a viagem, e numa correria de acções subiu ao décimo andar de elevador, pegou nas chaves e rodando a nostalgia invulgar em si, entrou em casa.

Não viu ninguém. As luzes apagadas. O cheiro a incenso no corredor e uma apatia e uma calma invulgares para aquela hora. Revistou o quarto, não o viu.
Foi sentar-se então, no sofá que compraram os dois quando se mudaram para aquele apartamento. Exausta, deixou-se ficar.

Por volta das quatro da manhã, ele abandona o ambiente marítimo da sua reflexão. Com o seu pensamento nela, faz-se à estrada no único objectivo de a contemplar. De a ter para si como dantes. Os olhos no risco branco da estrada e o velocímetro a sobejar no limite.

Perto do fim do trajecto, um sinal amarelo a cair para o vermelho. Esforçou um pouco mais o acelerador e imprudente, ultrapassou. Um outro carro atravessou-se no caminho e o choque foi inevitável. A buzina ainda soou, mas foi insuficinte. A colisão foi demasiado forte e o impacto tal, que num anterior rasgo de lucidez apenas foi capaz de encobrir a cabeça por entre os braços

à medida que a luz do faróis do outro veículo se desfizeram sobre a sua fragilidade. Fatal.
Assim que a ambulância chegou, deu por encontradas duas vítimas num acidente de viação. Trataram da papelada inerente aos factos, deixando para trás os destroços de duas vidas. O azul intermitente.

Ela acordara sobressaltada. Continuava estranha e só. Acendeu o candeeiro junto à mesa, e reparou numa folha de papel deixada sob uma vela. O telefone começa a tocar e ela vê-se impedida de satisfazer a curiosidade que acabava de notar. Ao atender, percebe que não conhece aquela voz. Perguntam-lhe o nome e num tom formal transmitem-lhe a má notícia.

Chora, pela terceira vez em toda a sua existência, deixando escapar o auscultador por entre as mãos. Trémule, dirige-se à mesa e pegando na folha de papel lê
o que estava escrito:

Fui esquecer-me de tudo o que foi feito e foi dito. Fui para me recordar que podemos voltar a ser o que éramos. Se entretanto chegares, espera por mim.
Não te preocupes, que eu já volto.
Amo-te.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Radiografia


Somos o que nascemos.
Nascemos e tornamo-nos.
Vamos crescendo à medida do possível, e por vezes aprendemos com o impossível que nos chega.
À distância ou perto demais.
Vivemos a vida durante a morte.
Lutamos para prolongar a estadia terrena. Conscientes.
Ou inconscientes, uns lutam pela justiça e outros pela bravura e a coragem.
Somos o corpo que nascemos.
A prisão a que nos queremos desprender.
Os braços e pernas dum destino rabiscado muito antes da primeira lágrima.
Do primeiro sorriso.
Do beijo primeiro ou do abraço que démos.
Somos a recordação e a lembrança no mesmo gesto.
A membrana que reveste a pele e a carne.
Somos o resto daquilo que ainda falta.
Daquilo que faz falta.
Enquanto uns lutam pela felicidade e outros pela cura à infelicidade.
Somos os passageiros e os viajantes na mesma estrada.
Pedra.
Pó e matéria circunscrita na terra.
Antes de tudo. No princípio de nada.
Somos o primeiro passo. A fragilidade em aprendizagem.
A fraqueza e a resistência.
E levantamo-nos erguidos sobre os pés.
Caminhando em linhas rectas. Transversais.

Uns mais que outros.
Ninguém como alguém.

Somos um mundo secreto por descobrir.
Trazemos a voz à boca para falar.
Para nos fazer entender, mais do que todos os mistérios.
Antes de nada. No princípio de tudo,
somos o gume da faca a atravessar a esperança e o desejo.

A última palavra


Assinava as suas opiniões crónicas sempre com a sua identidade.
Na caneta, trazia inúmeras reflexões que se debatiam nas profundezas, e tinham o respeito e a força de fazer suspender horas, minutos. O tempo mortal.
Eram pulsões contraídas, factos e verdades duma realidade imensa. Longa. Eram o retrato - ou o reflexo - de um homem verdadeiro, factual tanto quanto actual. Ele em si mesmo, a interrogação que se respondia e duvidava perante os pormenores mais insondáveis, cultura e conhecimento que se tornavam formas activas numa dimensão marginal. Polémica. E brilhantismo. E tamanha dedicação às Letras, à palavra.
Eram despojos duma riqueza interior que se fazia externa. Eram restos do que em muito lhe sobejava.
Muita da sua intelectualidade era um fio a dividir dois mundos. Dir-se-ia no

horizonte.
De seu nome, escrevia-nos
Eduardo Prado Coelho
porque a última e derradeira palavra era a dele. Porque lhe pertencia a última palavra. A que agora está condenada a sobreviver aos anos, ao esquecimento e às estações.
O esplendor da imortalidade que deixa. Digo-lhe:

Fazer-se ver e ouvir, lendo, cada linha como um caminho que nos leva dum mundo para outro, sem nos dar-mos conta de estar a pairar numa compreensão mais exacta e primordial da sobrevivência e do sentido de Humanidade. Como seres nómadas com um coração submerso no peito
.
Cai uma folha antes da hora. Fica não apenas o registo da sua passagem, mas bem mais que tudo: a raiz que nos semeou na memória. Na saudade inacabada. Na última palavra.

Pensamento I

Em vésperas do fim do Verão - época em que durante pouco mais de uma semana, me desintegrei da metrópole e dos seus síndromes populares, conjuntos do dia-a-dia - apresso-me devagar e de forma tranquila quanto possível, a expôr-me ao sol e à inércia dum mar azul e calmo a rebentar de nostalgia na areia de pegadas efémeras e húmidas.

Será este um conceito viável para dizer-se Liberdade?

De facto, longe da agitação humana e dos relógios contra o tempo, tenho encontrado um espaço à paz e serenidade; energias que renovo por estes dias de sossego.

As manhãs levantam-se quando um primeiro timbre de luz me invade pela janela a dentro. É o meu despertar mais puro.

As tardes dissipam-se entre banhos a meio termómetro e olhos solitários que correm na direcção dos barcos, percadores vagarosos e lentas silhuetas a esaparecer no fundo das correntes.

De noite, o corpo embrulhado em sal. Sentado num qualquer lugar não muito longe. contemplando a finitude das coisas - certos momentos - e as variações lunares que ocorrem nesta altura do ano. O brilho do céu deslavado e semi-nu à visão terrena. Um café, pequenos fragmentos e silêncios. O pensar denso - nem sempre - e, ponto.

Certos ciclos terminam quando existe outro no seu começo. E no final deste - ainda presente - fecho as pupilas no exterior, e aqueço de imagens e sensações o espírito indomável da viagem. Sítios, presenças e vazios em alguns casos sublimes e insubstituíveis.

Respiro.

Por fim. À sombra, repouso longamente e despreocupado. Ocupado por ideias que do chão, são meros castelos à mercê do vento.