quinta-feira, 22 de maio de 2008

Cama nº 17





Um quarto cercado por paredes completas. Quatro por quarto. E à saída de uma porta ténue um balcão de pessoas de bata branca, sentadas. À espera. Como toda a gente. Os visitantes e os visitados. A família. E os seus doentes. Os que esperam face aos que desesperam

numa campainha que soa quando um deles exclama de dor.

«Não aguento mais isto» desabafa,

nos suspiros que abafa sem ninguém. Porque demoram sempre aquela breve eternidade entre o alívio e o limite as pessoas de bata branca, andando pesadamente sobre o ofício e a diligência de estarem em vários lugares dentro do mesmo instante – sem que estejamos

«Alguém me está a ouvir» reprime a retórica de uma pergunta impaciente,

a dor de não aguentar mais aquilo, não suportar mais aquilo e por isto a voz torna-se no eco da própria voz a par da súplica. Como se não bastasse as mulheres e os filhos, os mais próximos que continuam à espera pelos corredores

às voltas, adiando a vida em tudo o que nela não se explica. A confusão do deambular, presos entre texturas de paisagens belas e irracionais espalhadas pelos cantos, molduras de uma imagem em tons que o cinzento não traduz.

«Por favor»

um grito de ajuda no meio de tanta gente para que se ouça até que seja a insistência de quem deitado sobre a cama não tem a noção do corpo a deixar-lhe de pertencer, a deixar-se ficar para o lado, tímido e sem razão

«Por favor»

alguém que entra, finalmente, de bata branca e mãos nos bolsos cozidos aos quadrados, perfeições da geometria incompreendida dos que sucumbem às vezes num ápice às tenazes e ao f(r)io da ciência.

«Tenha calma que o doutor já vem e vê o que se passa» esse misto de uma esperança falível e uma contingência que assim se obriga. «Tenha paciência» mas como. Como?

Paciência e calma são direcções contrárias ao curso que o oxigénio pulsa através dos tubos. Da algália que limita a mais básica necessidade. Dos braços malhados de nódoas negras por todas as tentativas.

Do choque. Do resultado dos exames

e o coração débil pela operação ao

«Não me diga que tenho “isso”. Não quero saber “disso”.» Um cancro nos rins. A hemodiálise desde há anos que de nada serviu. A dor resultante do esforço de uma operação que parecia
«Correu tudo bem, dentro do normal» o cenário mais esperado. A pessoa de bata branca a entrar pelo quarto, cercado de quatro paredes e com alguém a pedir socorro, a implorar que lhe removam a dor de uma vez por todas. Por querer ficar bem, dentro do que é normal claro está, a recuperação de uma autonomia entretanto perdida algures no caminho da idade.

«Senhor doutor não me sinto muito bem, veja lá se» conseguíssemos, pudéssemos reabilitar todas as funções do organismo com que nascemos e ficar assim para sempre. Não, e é triste. As metástases a roer, a corroer, a morder por dentro e a alastrarem-se para o mais inóspito lugar. Pura biologia, tamanha anatomia.

«Não se preocupe que vamos fazer todos os possíveis»

e nisto o que se pode fazer, nós os amigos e familiares, as mulheres e filhos apenas esperar. Esperar mais um pouco. Não tarda e tudo volta ao que era. Não tarda e já nos deixam entrar para a visita. Porque já está mais que na hora. E trazem-se as bolachas preferidas para o lanche. Um caixa inteira de. Fé?

não é assim? A fé devota-se numa igreja, sim. Mas e num Hospital ou na Unidade de Cuidados Intensivos «pós bloco operatório» qual postura e atitude se deve ter e demonstrar em qualquer um destes abismos à religião. A legitimidade de rezar para que seja suportável o desconhecido. Imerecido, penso

«como lhe agradeço senhor doutor, já me sinto melhor» na voz de quem reconhece que a sua mortalidade foi salva por uma fracção de tempo. É justo.

E não faz sentido aquando da altura de ir embora, familiares e amigos, os mais próximos mulher e filho que não se despedem, porque é duro partir. Injusta a despedida. E no entanto, o amanhã – sonha-se, é já ali, quando no corredor recomeçarem as voltas e a deambulação de toda a espera. Contudo, os olhos padecidos e a pele amarelada tocam-se muito depressa, na ponta dos dedos, sobre o antebraço, e um sono que imita o sossego que a alma desmente. O aviso das pessoas de bata branca é um sinal

«agora tem mesmo de ser» pois bem.

Um último beijo. Quem sabe, às vezes nessa fatalidade da últimas coisas, um olhar já desacreditado de brilho e fluidez. A lucidez com que se mascaram os que esperam face aos que desesperam. As palavras tão pequeninas que mal se ouvem mas que lá se sabem de cor. E depois

o silêncio a retomar o quarto, cercado por paredes completas. Quatro por quatro. Antes da noite e do repouso a refeição obrigatória. E cedo, tão precocemente, a madrugada ainda de luzes lá fora a latejar naquelas circunstâncias. Interiormente e muito densa. Uma «situação inesperada» rima com morte. Assim. Sem mais nem menos, dirão no turno de enfermeiras e auxiliares presentes, com uma bata quase branca

Assim. Sem porquês nem remédio

cerca das oito da manhã do amanhã que nunca existiu «porque não foi possível reanimar a tempo». Sem dó nem piedade.