domingo, 31 de agosto de 2008

sem Pegadas em Olissipo





Longe da cidade, afasto-me das suas margens e parto para o centro de um outro lugar. Respiro o sal temperado e estival, e faço-me descalço sobre a brisa de areia à beira-mar.
Em si, a representação maior do litoral é um retrato vazio. Já sem pessoas e chapéus coloridos a povoar em sua medida. Sem ninguém, película fotográfica que recorto depois do sol se pôr. Há

o mesmo muro marginal, aquela mesma erguida fortaleza – inactiva e que flutua pelo passado – um pouco mais envelhecida, cada vez mais as mesmas praças e as suas vias afluentes íngremes e estreitas, sempre as mesmas rugas iguais. A calçada à portuguesa são somente pedras negras e brancas num único traçado. E a habitar a memória, o mesmo pontão de sempre, atravessando desmedidamente as marés matinais, de todas as vezes. Cada rocha é um improvisado descanso à mercê do horizonte, essa linha recta quase dirigida a sul, ficando para o norte desnorteado sentido de outros movimentos outros rostos – de aspecto panorâmico.

Lembrar-me que o céu, daqui, é mais límpido e quase a deixar transparecer a sua película mais fina. Uma vez por ano,
o ciclo repete-se.

Faz-se as malas como se tivesse hora marcada para fugir, desde sempre no mesmo porto. Ou ponto de partida, perspectiva emocional que marca o momento da viagem.

Arruma-se uma parte da vida em dois ou três ensejos e numa túnica de desejos reencontro o destino com a espera já consumada.

Esquece-se as luzes e o som dos dias anteriores, e todo um hábito se desabitua – temporariamente - com a expugnação da minha metamorfose. Uma vez por ano, o ciclo repete-se, longe da cidade, como se fugisse à mesma hora que pretendo chegar, mais tarde. Consciente que o regresso dará por terminada a evasão física e mental, a que me julgo perante o universo imaterial e filosófico do âmago da própria evasiva. É o que chamo – a liturgia do sossego. Porventura, a paz interior que reassumo durante a real ausência e o falso esquecimento. As amarras folgam de forma muito ligeira o corpo, agora solto, e a odisseia do pescador é um chamamento de liberdade que indicio enredado apenas pela sua esgotável brevidade. E paciência. De resto, há
o que se mantém e a prudente continuidade de datas contra o calendário, sem clamor. Porque a geometria visível tem a força altruísta da anamnese do tempo feita de tempo, por si só. De resto, embora latejante a diferença entre terra de homens do mar e terra de homens terrestres, há

sempre um Verão em que sobra em água tudo aquilo que o homem constrói ou pode destruir. Há o inevitável toque com a palavra na fase de todos os eclipses. A palavra escrita repetindo o seu merecido esplendor na importância em que revela muito mais que a sua autónoma identidade, como amantes que não se conseguem olhar nos olhos senão quando se separam para se puderem conhecer novamente. Mas
era uma criança que já nessa altura escrevia os meus passos neste reencaminhar para a minha segunda casa. E hoje, no caminho inverso – adverso seria arriscar demasiado – e essa reconhecível juventude parece aguardar por mim à porta, até à criança outra vez.

Algumas imagens que são como o primeiro álbum de fotografias com que me deparei anos depois, frente a frente os primeiros versos como o primeiro livro em que sonhei e sofri os primeiros poemas, e que jamais seria capaz de os querer apagar mas que não reli, desde então

o vento gelado vindo do lado mar. Recupero as histórias de frotas embaladas ao colo da esperança. Da minha – talvez – ilusão. Essa inexplicável paixão de quem retoma à sua morada, ao chão firme, à vedação verde e à pureza dos dias sem que houvesse nevoeiro. E o conhecimento de quem anuncia a jornada que começa ainda nocturna e finda com o dia já composto. Aí,

o mar abraça o cansaço, envolvendo cada dor numa camuflagem cada vez mais ténue, e pequena. Um dia à distância da terra, da gente. Em alto farol, uma pena de risco com um travo a propósito, desconhecido mais que incerto. Este, o – meu – pensar mergulhado numa cadeira metal e sombra reflexo, ao largo dos marinheiros virada a este para o índigo das suas almas, em descanso.

Assim o diz, a placa rectângulo em mármore nessa homenagem tão justa e solene capaz de conter as lágrimas das mulheres e suster os amargos à proa do barco dos companheiros que antes os viram partir. Nessa fuga insolente sem hora marcada, acrescento ao lamento. Sem que tornem a ser os bens aventurados, um outro dia, os retornados. A singular e exclusiva herança deixada

é uma imensa saudade desse oceano inalterado face às estações trazidas pela corrente. Mas era uma criança que nostálgica, me velava de olhares a limpo como se largasse as cordas do meu coração em direcção à costa, por um indício de génio e corpo inteiro – deixando-me adormecer sob o astro-rei a uma temperatura plena de sede. Esta criança, essa

que trago comigo é a mesma que me nomeia em todas as pulsações a que pertenço e a que me faço intacto. Tão nuclear como um pedaço de um búzio partido arremessado à força contra a inutilidade. A trajectória desse impulso que voa a direito, que paira tangente à água esbranquiçada, cuspida na forma de espuma por uma boca distante. Sou esta substância de célula sazonal, cavando o meu trecho musical fechado sobre a pauta – a compasso no desfecho da composição. Abrem-se os signos, e qual abutre cirúrgico na secura da carne. Porque a implosão dá-se simplesmente no instante em que o seu rumo se perde na comunhão. Como se parasse, como se instantâneo, cada coisa se refinasse noutra coisa – palavra perdida algures no fundo para chegar até si, no futuro, e desfiando-lhe as rédeas a relançasse para longe, numa última oportunidade, num desafio à lógica ainda mais profunda. Ainda com mais certeza de que outros além-mar farão o mesmo. No meio

deste imaginário e o mundo adquire uma máscara de diferentes tonalidades. A superfície tolda-se lucidez sem amarrotado desespero nem remendada ansiedade. A rasgos, é uma manhã passado muito tempo, e em que brilha o alcatrão da rua junto dos seus homens do leme. Exaltam-se os risos, engrandece-se a alegria agora infinita, testemunho o afecto dos graúdos à mesa – enquanto há miúdos que brincam – bebendo e comendo até ao fim da vida, num claro sinal de que poderia terminar-se nessa imagem segura de felicidade. Ao ouvido

ouço segredos passivos numa música de noite amena. Pestanejo as constelações que avizinho resultantes da neblina entretanto, ausente. De facto, é uma noite musicalmente amena a que se estende – e entendo – num grau superior à geografia mental, insubmissa como pano de fundo à cogitação dos astros. Permaneço um pouco mais sentado e deixando por cá o rasto da minha quietude. Este lugar que resiste plácido num misto calmo de solidão e abnegado cuidado. Há
caras de pessoas que por aqui passam sempre que cá venho, todas as noites que cá estou. Os dobrados pedidos a que os vícios se habituam. À priori

observá-los desde o exterior é como revisitar-lhes estranhamente os movimentos da noite anterior – como remexer nas entranhas do distinguível e do que não se transfigura em mais nada. As roupas os semblantes as expressões, numa amálgama à posteriori da madrugada igualmente tardia. Sorriem devagar e bebem com gosto. Espelham, também, a coragem da existência resguardada de humildes trajes e em que o mais pesado fardo serão – são – as vicissitudes das escolhas de cada um. Serão os indivíduos que não conheço mesmo sabendo quem são, órfãos de nome mas que aprecio nesse convívio especial, malhado de contos e histórias respeitáveis. Sem ponta presa à agulha, nunca se deixam terminar. Até porque

transportam um clima imprevisto aos ombros sem que outras insignificâncias ou sabedorias interfiram com a sua pacatez. Confesso que sempre que os escuto pouco me importa o vocabulário que lhes padece de rigor ou os conceitos com que à sua vontade reclamam para si os amigos ouvintes ou os meros conhecidos e curiosos – como eu – prestando-lhes a atenção numa gargalhada excedente. Resumo-me
a figura de uma alegoria que não é a minha, embora aprendendo a sua linguagem me converta em silêncio o mérito de tão hábil palestra. É sempre assim,
de que jeito ou feito, uma vez por ano ao balcão, aquando o ciclo recomeça.
Saúde. É

sempre assim que se brinda. Embatem-se os copos contra as garrafas ou vice-versa, apuram-se estados líquidos em estados de espírito semelhantes. Reparte-se a despesa e partilha-se o derradeiro gole juntamente – porque não justamente, sim – com despedidas a conta gotas que devagar e ebriamente se vão calando vozes abaixo.

Fecho os olhos

postos no alcance de algumas gaivotas itinerantes. Próximo do céu e fonte da íris, o prenúncio de um náufrago é uma firmeza impossível de objectos e contornos bem vivos, que casualmente afiguram texturas - quasi - fantasmagóricas. Para amanhã,
previsão de preia-mar durante o maior período luminoso e baixa-mar num abrandamento meteorológico para o final da tarde. Estendido no areal
até que a onda se corrija na paisagem – partículas que expressam a terra na sua habilidade. Penso
abrigado por um rumor agitado. O tecido na rede queimada pelo isco azulado
de anzol que abre a fenda primordial do levante. Vento que suspira que respira comigo, até que

quando os abrir vou ver a cidade como sempre a deixei.