quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Cinestesia



O coração muda a cada hora que passa. A aorta bombeia o sangue que nos une e nos junta. As águas separam-se e a respiração diminui-se. Todo o tempo que amamos alguém é um amor demasiado velho. Dias, meses ou anos. Pode durar apenas um segundo e com um pouco mais, um minuto numa hora. E o coração muda ciclicamente.

Quem és? Quem sou?
Em que nos tornamos?

Às vezes há tudo. Noutras não acontece nada. Não há nada, senão uma voz. Um conjunto de palavras memorizadas. Uma nostalgia que deciframos no sentido do movimento e do toque. Tristes caracteres que entristecem o mundo, contornando a vida nos seus momentos de lucidez
acostando o coração ao invés do conforto e da evidência. Aumenta o ritmo cardíaco. Faz-se uma certa constância na cinestesia essencial
junto ao tórax um aperto leve, e desapertado.

Um, dois, corpos lado a lado. No horizonte. Tombados como duas formas de água.

O silêncio diz-se. Ouve-se. Escuta-se e é audível. E no ar
paira uma turbulência de uma bonança intacta e guardada pacificamente com todo o desassossego impossível.

Sou-te. Tu és-me. Somos

gotas. Um ciclo de círculo, embalado pela marés que dantes se bebiam nas tardes quentes e nas noites em que um de nós partia antes do outro.

E amorfamente, por vezes descansa imóvel à beira dum estado líquido em que nos finge do seu abandono. O coração

bate, palpita. Na inevitabilidade da vida.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Cera



Arde acesa uma vela,

de espelhos, luz banhada inerte

E intensa.

Há algo que se evapora

e que se consome.

Repousam as estrelas

e numa temperatura branda,

a Lua foge brilhantemente.

domingo, 9 de setembro de 2007

Mercúrio



As palavras ardiam na folha.

Uma a uma, colidiam com a ponta dos dedos
e desfaziam-se entre si numa mancha de fogo.

O sentir queimava-se nas margens.
do riso, lume.
do olhar, labareda.
do silêncio, chamas.

As palavras consumiam a tinta.

a noite intocável era uma cortina clara,
amarela e vermelha e de contornos acesos.

O poema debatia-se como podia.
à vez.

O silêncio, e o riso dos olhos
a palavra quente e um brilho de cinza.
ou
o cheiro seco da pólvora.

As palavras ardiam na folha
por dentro,
e em segundos que o tempo não contou

uma vida inteira se extinguiu por entre

rios e marés
que lentamente arrastavam pequenos pedaços brancos,

de cartas que nunca foram lidas
e poemas que nunca foram escritos.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Verba volant, scripta manent



"As palavras esvoaçam, os escritos permanecem".


Ela tinha-lhe dito: Não me perguntes onde estive.

E saía sempre de casa a uma velocidade impossível de ele a acompanhar. Antes ficava, impávido no sofá que compararam os dois quando se mudaram para aquela casa, de cigarro na mão e de olhos vazios. O estrondo da porta era o mesmo desde que se tornaram dois desconhecidos debaixo do mesmo tecto.

Mas nem sempre foi assim.
Quando se conheceram, eram os mais apaixonados do mundo. Traçavam sonhos e projectos de futuro, com tal força, que dir-se-ia que não se haveriam nunca de deixar de ser um e outro. Tinham gravado no rosto as mesmas palavras e nos gestos os mesmos movimentos impulsionados a dois. Eram um, apenas. E os dias, para eles, eram de uma cadência só ao alcance dos que se permitem sonhar.

Depois, o tempo revelou-se. As noites começaram a tornar-se mais cinzentas. Conversas antigas disparavam raiva e amor-ódio pelos cantos do quarto, da sala, à hora de jantarem juntos - que foi sendo cada vez mais raro - até que um dia ele lhe perguntou:

Queres ir-te embora?

Ela não respondeu. Não lhe deu nehuma conclusão concreta. Fugiu à espada e deslizando parede abaixo, chorou.

Ela não chorava. Parecia que não haviam lágrimas naquele corpo, fosse o que fosse. Acontece o que acontecesse. E ele sabia que isso não era insensibilidade dela, mas a fórmula que encontrara para estar em defesa do seu íntimo lugar de sentimentos roubados e de uma inocência perdida. Foi essa a característica que o levou a aproximar-se e a tratá-la como mulher. Foi o modo como se chegou perto sem quase lhe tocar que fez com que ela se apaixonasse. E nem no primeiro toque ela chorou. Por seu lado, ele sorriu.

As vidas deles sempre foram marcadas por muitas mudanças. E naquele preciso instante em que ele a confrontou, uma mudança ocorreu. A sua voz ficara presa na garganta e por mais que quisesse ter mentido, e dizer-lhe que sim, não foi capaz. E imediatamente ele tentou abraçá-la, perdoar-lhe os últimos esboços a negro da sua vida, e aceitá-la como fizera dantes. Ela retraiu-lhe o afecto, desculpou-se pela corrosão a que estavam sujeitos e pediu-lhe que mudasse. Que voltasse a ser o rapaz que havia conhecido a anos-luz daquele abafamento em que se encontravam. Porque ele a fizera sofrer desde então, e por consequência ela não queria assumir a culpa e a derrota sozinha.

Ambos se perderam. Ambos apostaram e pouco ou nada lhes restou. A vida é demasiado inteligente nestas coisas. Ela disse-lhe então:

Não me perguntes onde estive.

Ele, cansado e vencido por fora, debatia-se por dentro. Todos os dias a via arranjar-se e desaparecer num impulso, para lá do abrigo que ambos construíram. Sabia que aquela já não era a sua mulher. Pressentia que já não lhe pertencia como homem. Como amigo. Nem tão somente, seu companheiro de outras batalhas. Todos os dias sentia-se cada vez mais sem armas para resistir. Seria necessário?

Não me perguntes onde estive. Cada palavra um arremesso no centro do estômago. O estrondo da porta a fechar-se sempre igual, o som agudo e grave a entoarem-lhe nos vestígios de uma memória pouco clara e nítida.

Ultimamente sobrevia na insegurança da noite. Á espreita dum deslize qualquer que justificasse que ambos não estava preparados para partir. Sem nehuma esperança. E foi numa dessas madrugadas, insane, que rumou ao carro e acelerou para longe. Queria afastar-se do local do crime para sentir a necessidade de voltar mais tarde. Queria a saudade a nascer outra vez.

Chegou ao destino improvável em meros minutos. Saiu e encostou-se à pedra do pontão. Era inverno e ele acendeu uma luz no frio. Fumou todo o seu passado recente naquele cigarro. Contraiu os pulmões para dentro como se preferisse renascer no ar respirado. De mãos nos bolsos e em silêncio arranjara uma derradeira fé de ir ter com ela e recomeçar.

Ela demorou menos que o habitual. Apesar de todo o ritual e de uma liberdade imposta por si mesma, sentia-se estranha. O amor reclama sempre a sua presenças aos amantes. Não aguentou o estar rodeada de pessoas, as conversas circunstanciais e o cenário colorido de bares e locais que para ela, nessa noite, animação alguma lhe tinham causado. Deu por si a pensar nele. O quão farta que estava de arrastar uma possível ruptura. Que não queria, no fundo. Porque não estava preparada. Porque não queria.

Chamou um táxi e indicou a morada. Pediu ao motorista para ser rápido. Para o que desse e viesse, tinha uma súbita vontade de se abrigar perto dele. Nos seus braços.

Chegou. Pagou a viagem, e numa correria de acções subiu ao décimo andar de elevador, pegou nas chaves e rodando a nostalgia invulgar em si, entrou em casa.

Não viu ninguém. As luzes apagadas. O cheiro a incenso no corredor e uma apatia e uma calma invulgares para aquela hora. Revistou o quarto, não o viu.
Foi sentar-se então, no sofá que compraram os dois quando se mudaram para aquele apartamento. Exausta, deixou-se ficar.

Por volta das quatro da manhã, ele abandona o ambiente marítimo da sua reflexão. Com o seu pensamento nela, faz-se à estrada no único objectivo de a contemplar. De a ter para si como dantes. Os olhos no risco branco da estrada e o velocímetro a sobejar no limite.

Perto do fim do trajecto, um sinal amarelo a cair para o vermelho. Esforçou um pouco mais o acelerador e imprudente, ultrapassou. Um outro carro atravessou-se no caminho e o choque foi inevitável. A buzina ainda soou, mas foi insuficinte. A colisão foi demasiado forte e o impacto tal, que num anterior rasgo de lucidez apenas foi capaz de encobrir a cabeça por entre os braços

à medida que a luz do faróis do outro veículo se desfizeram sobre a sua fragilidade. Fatal.
Assim que a ambulância chegou, deu por encontradas duas vítimas num acidente de viação. Trataram da papelada inerente aos factos, deixando para trás os destroços de duas vidas. O azul intermitente.

Ela acordara sobressaltada. Continuava estranha e só. Acendeu o candeeiro junto à mesa, e reparou numa folha de papel deixada sob uma vela. O telefone começa a tocar e ela vê-se impedida de satisfazer a curiosidade que acabava de notar. Ao atender, percebe que não conhece aquela voz. Perguntam-lhe o nome e num tom formal transmitem-lhe a má notícia.

Chora, pela terceira vez em toda a sua existência, deixando escapar o auscultador por entre as mãos. Trémule, dirige-se à mesa e pegando na folha de papel lê
o que estava escrito:

Fui esquecer-me de tudo o que foi feito e foi dito. Fui para me recordar que podemos voltar a ser o que éramos. Se entretanto chegares, espera por mim.
Não te preocupes, que eu já volto.
Amo-te.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Radiografia


Somos o que nascemos.
Nascemos e tornamo-nos.
Vamos crescendo à medida do possível, e por vezes aprendemos com o impossível que nos chega.
À distância ou perto demais.
Vivemos a vida durante a morte.
Lutamos para prolongar a estadia terrena. Conscientes.
Ou inconscientes, uns lutam pela justiça e outros pela bravura e a coragem.
Somos o corpo que nascemos.
A prisão a que nos queremos desprender.
Os braços e pernas dum destino rabiscado muito antes da primeira lágrima.
Do primeiro sorriso.
Do beijo primeiro ou do abraço que démos.
Somos a recordação e a lembrança no mesmo gesto.
A membrana que reveste a pele e a carne.
Somos o resto daquilo que ainda falta.
Daquilo que faz falta.
Enquanto uns lutam pela felicidade e outros pela cura à infelicidade.
Somos os passageiros e os viajantes na mesma estrada.
Pedra.
Pó e matéria circunscrita na terra.
Antes de tudo. No princípio de nada.
Somos o primeiro passo. A fragilidade em aprendizagem.
A fraqueza e a resistência.
E levantamo-nos erguidos sobre os pés.
Caminhando em linhas rectas. Transversais.

Uns mais que outros.
Ninguém como alguém.

Somos um mundo secreto por descobrir.
Trazemos a voz à boca para falar.
Para nos fazer entender, mais do que todos os mistérios.
Antes de nada. No princípio de tudo,
somos o gume da faca a atravessar a esperança e o desejo.

A última palavra


Assinava as suas opiniões crónicas sempre com a sua identidade.
Na caneta, trazia inúmeras reflexões que se debatiam nas profundezas, e tinham o respeito e a força de fazer suspender horas, minutos. O tempo mortal.
Eram pulsões contraídas, factos e verdades duma realidade imensa. Longa. Eram o retrato - ou o reflexo - de um homem verdadeiro, factual tanto quanto actual. Ele em si mesmo, a interrogação que se respondia e duvidava perante os pormenores mais insondáveis, cultura e conhecimento que se tornavam formas activas numa dimensão marginal. Polémica. E brilhantismo. E tamanha dedicação às Letras, à palavra.
Eram despojos duma riqueza interior que se fazia externa. Eram restos do que em muito lhe sobejava.
Muita da sua intelectualidade era um fio a dividir dois mundos. Dir-se-ia no

horizonte.
De seu nome, escrevia-nos
Eduardo Prado Coelho
porque a última e derradeira palavra era a dele. Porque lhe pertencia a última palavra. A que agora está condenada a sobreviver aos anos, ao esquecimento e às estações.
O esplendor da imortalidade que deixa. Digo-lhe:

Fazer-se ver e ouvir, lendo, cada linha como um caminho que nos leva dum mundo para outro, sem nos dar-mos conta de estar a pairar numa compreensão mais exacta e primordial da sobrevivência e do sentido de Humanidade. Como seres nómadas com um coração submerso no peito
.
Cai uma folha antes da hora. Fica não apenas o registo da sua passagem, mas bem mais que tudo: a raiz que nos semeou na memória. Na saudade inacabada. Na última palavra.

Pensamento I

Em vésperas do fim do Verão - época em que durante pouco mais de uma semana, me desintegrei da metrópole e dos seus síndromes populares, conjuntos do dia-a-dia - apresso-me devagar e de forma tranquila quanto possível, a expôr-me ao sol e à inércia dum mar azul e calmo a rebentar de nostalgia na areia de pegadas efémeras e húmidas.

Será este um conceito viável para dizer-se Liberdade?

De facto, longe da agitação humana e dos relógios contra o tempo, tenho encontrado um espaço à paz e serenidade; energias que renovo por estes dias de sossego.

As manhãs levantam-se quando um primeiro timbre de luz me invade pela janela a dentro. É o meu despertar mais puro.

As tardes dissipam-se entre banhos a meio termómetro e olhos solitários que correm na direcção dos barcos, percadores vagarosos e lentas silhuetas a esaparecer no fundo das correntes.

De noite, o corpo embrulhado em sal. Sentado num qualquer lugar não muito longe. contemplando a finitude das coisas - certos momentos - e as variações lunares que ocorrem nesta altura do ano. O brilho do céu deslavado e semi-nu à visão terrena. Um café, pequenos fragmentos e silêncios. O pensar denso - nem sempre - e, ponto.

Certos ciclos terminam quando existe outro no seu começo. E no final deste - ainda presente - fecho as pupilas no exterior, e aqueço de imagens e sensações o espírito indomável da viagem. Sítios, presenças e vazios em alguns casos sublimes e insubstituíveis.

Respiro.

Por fim. À sombra, repouso longamente e despreocupado. Ocupado por ideias que do chão, são meros castelos à mercê do vento.