quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Não escreveria sobre Amor Tangente e Longínquo de outra forma senão pensar


O Passado e o Futuro não têm o mesmo rosto.


Vou por esta estrada de espinhos e de rosas/na cor do jardim que a infância do amor se recorda/vem comigo e isoladamente contigo.

Não é preciso mais nada/a não ser/acompanha-me
e vem também livre por esta estrada/pisando as pétalas da tua sensatez ilusória/irrisória utopia de nuvens/vem por aqui que é aqui o caminho/vem comigo junto a ti/mesmo que sozinho no arrastar desta escuridão brilhante/acompanha-me só – sempre e tanto
nas margens que flutuam no tempo para além da memória/sigo em frente carregado de palavras versos ou poesia/é o céu que nos trai/ali que mais adiante se encontra a luz que não nos mentiria/vem/vou eu - agora/sereno e cansado/ao longo deste caminho sem aroma a rosas/depois tu/ porque todas elas sepultaram as suas raízes/distintas no mesmo final/terra/pó/chuva semeada/de novo terra/um romance circular do passado/sem ti/em que espinhos eram o sonho tecido e puro/e a rosa o crescimento do belo/do amor/a cura para toda a infelicidade/mas dos espinhos só a cicatriz do acaso/e da rosa/o significado a flor/que morava na janela à beira dos dias/tantos dias vividos/outros nem por isso/imensos dias desperdiçados/violência é abdicar do que não se poderia perder/tanta vivência apoiada na longitude do oceano/na latitude da esfera polar/em que mergulhei por único/tu ainda não existias já/sem ti/em ti/até mesmo eu estava no começo/de tudo e nada/que foi tanto que à janela se respirou/e após/o perfume/a rosas/os restos delas nadando neste caminho por onde vou/através da seiva indiferente e esmorecida/estrada fora intensamente/sigo em frente/no rasgar cândido mas magoado do jardim de que cor/da origem/o amor


No escutar da profunda felicidade
Se me perguntasses para onde vou


(…)

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

A breve história que não tinha ponto final


Estamos sentados todos à mesa.
Os quatro que somos. Os nove que seríamos.

Parágrafo - Eu fico numa da pontas a
quarenta e cinco graus em relação ao Carlos.
Do meu lado esquerdo a minha Mãe enquanto que o meu Pai
vejo-o à cabeceira. Tem junto a si a Mariana e a seguir a ela
o David. A minha avó está ao meu lado,
ao oposto da irmã e do António.

Sou o mais novo e o mais pequeno. E projecto nos meus olhos
a terra que tanto nos devolve e nos rouba. O pó que fica da nossa passagem.
Mas hoje estamos todos sentados a esta mesa rectangular,
alinhados nos lugares comuns numa noite igual a esta.

As luzes na sala vão piscando, cíclicas. Há um ritmo silencioso
em cada uma das cores que vão manchando a parede e há, também, um silêncio colorido espalhado no chão. Fico durante uns segundos, a ver os rostos vermelhos e lilás, azul e cor de laranja. Amarelo e verde. E a voltarem ao mesmo, depois repetidamente.

Ouço a voz dos mais velhos e no meu lugar vou amachucando
o guardanapo, branco, à medida que a ceia se arrefece no prato.
O fumo levantando-se no ar como uma névoa lenta a envolver a atmosfera,

"Ainda bem que estamos cá todos este Natal."

Tento perceber a força implícita de tais palavras. O todos que seríamos, todos os dias, se não fôssemos quatro. Os nove que ficaríamos, por agora, a beber um chocolate quente quando a madrugada soasse no canto do cuco.

Mas ainda bem que estamos cá todos, sorrio em afirmação.

Passado, recordo numa vaga de frio

a Mariana que ficou sem o David ainda nova. Ele que é a primeira vez que o vejo sentado à mesa comigo porque nunca antes o conheci. O António que falava sempre brando e convicto sobre o que quer que fosse. E o Carlos que abracei aos seis anos e desde então cresci sem os seus abraços.

A Mariana que à três anos não vinha cá passar a consoada. O David que facilmente o descrevo através de uma fotografia muito antiga.
O Carlos, e o seu cachimbo aceso em aroma suave e que distingo de qualquer outro odor. E o António que em Maio último o visitei.
Até hoje.

(De acrescentar que a Manuela chega da América já para o ano, depois de ter encontrado - suponho, algum conforto próxima do filho e da neta em tão longe viagem)

Presente, no calor das fogueiras
as lembranças embaladas em papel e cartões em que se escreve o que alma condensa para esse instante singular. A árvore com a estrela maior a engrandecer a beleza das gargalhadas e dos risos emotivos. Eu, a única criança, atento a todo este gosto folheado e saboreado por todos, em todos, conjunto do que fomos e seríamos. Uma vez mais.

Futuro, oxalá
no dia seguinte e ainda com as roupas marcadas pelo amor e afectivamente, enchêssemos as ruas vazias com a nossa alegria de termos estado juntos, e ainda bem, como nesta noite

Estamos todos sentado à mesma mesa.
Os quatro que somos e os nove que também fomos

O tempo não pára e eu,
estagno a minha vida por esse retrato
vivido sob o tecto da idade em que
se comiam sonhos e se bebia largamente
a felicidade em copos de cristal


Ponto.
Excuse me while (and when) i dissapear.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Ipsis Verbis


Desconheço-te e jamais olhei para ti

sabendo as tuas feições semelhantes ao rosto que observo pela manhã,
na alvorada eternamente escura do nosso infortúnio
- infuturo.

Desconheço-te e jamais olharei para ti

decifrando os dias da minha vida, contando solenemente todas as
histórias que erguemos da juventude - na rebelde convicção
em que sobraria um pouco um do outro
se mais não restasse de quem não julgámos ser.

Desconheço-te e jamais olho para ti

mesmo se ontem foi o passado mais próximo que - haja -
há manhã
a ilusão séria de te recordar.

Entregue ao simples retrato que em frente às rugas
seguro desmembrando a sós

a certeza porque

Não é no Outono que a chuva nos traz o frio do Inverno,
nem no Verão que as folhas secam de solidões Primaveris


Asseguro-te que me desconheço e jamais me admirarei
da tua ausência - real ficção seria
irreconhecida e invisível se em cada olhar

te desapareço.

(...)

Não te olho. E por isso,
volto costas e talvez um dia consiga chorar.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Regresso


Durante o tempo de recuperação, pensei inúmeras vezes que se a vida fosse um lançamento de moeda ao ar,
eu não saberia de que lado ficaria - ou qual deles melhor me caberia escolher. Ainda que o tempo desse mais de si ao tempo tempo
indemorado e incalculável. Ainda que (...)

Num dos dias durante o forçado repouso, e em que mal via a luz do dia no seu exterior - a passos bastante ligeiros saí, e fui sentar-me, ao ocaso, numa esplanada. Depois de trazido e consumido o café

olhei como se reparasse tudo pela primeira vez e à minha volta

Um final de tarde laranja. A ponte branca com o seu movimento linear de faróis vaivém cá e lá. Pela rua pessoas que chegam a casa e luzes que acendem janelas no alto dos edifícios. O céu
a z u l brilho que se estende no indecifrável conceito de memória das gentes, de mim mesmo, até em relação a tudo quanto se moveria nesse prometido anoitecer.

- Porque lembrar faz parte e cada um recomeça todos os dias à sua maneira -

houve um registo notável entre o passado e o futuro - bem presente diante olhos lívidos

O avô que se senta na mesa amarela com o seu neto. Ele, em curva descendente, brinca com uma bola enquanto ele, pequenino, ri inocente e prolongadamente. O ruído do seu sorriso inocente enquanto a idade for essa própria inocência.

parava e olhava para todos os lugares, para todos os movimentos exteriores e o avô, acompanhava-o também na sua agitação à medida que cada mistério será descoberto e que mais tarde já lhe poderá eleger. Por agora

Havia igualmente um cão às voltas no cio Outonal, circulando preso a uma árvore e ladeando a cauda com a proximidade de quem passava indiferente. Ou de um qualquer som casual que o pequeno fazia na presença do seu protector. Quando a bola cai ao chão

e saltita perante a observação de ambos, o cão atento. O neto sem saber
mais o avô que ligeiramente deixa-se encostar à cadeira onde permanece sentado um pouco mais que a paciência lhe permite. A idade que é esse acto próprio de espera, de paciente abnegação.


C a l c u l o que ainda ouvi o sorriso infantil e gigantesco da criança por mais duas ocasiões. Antes de se terem ido embora, de mão dada, bem devagar. Ainda que a bola tenha ficado esquecida sobre a calçada

- Não tem i m p o r t â n c i a, disse-me o avô.


haverá na minha memória descritiva o som de quem, por agora, sonha na medida de um mundo em forma de bola - sem destino e desconhecendo o sabor agridoce de algumas recordações.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O meu pé direito


Gostava de ter conseguido escrever durante todo este tempo. Mas ultimamente nem sei por que palavras hei de (d)escrever o que em cinco semanas a minha vida se alterou. Ou o que era dessa mesma vida antes e se encontra no depois.

Sem dramatismos nem reticências fica o meu agradecimento a todos por quem senti o abraço o beijo ou a palavra, tudo isto, mais do que qualquer outra vontade ou desejo que pudesse ter neste momento.

Sem nomear o afecto, apetece-me dizer que é bom estarmos rodeados por aqueles que gostamos, sempre, e às vezes sem que as circunstâncias o definam ou expliquem melhor o seu significado.Considerando-me de regresso a casa, passei para deixar um pedaço de voz por estes telhados vidrados, por esta pequena fragrância de volta à poesia sem poema – desta vez.

Obrigado.

domingo, 7 de setembro de 2008

Post Scriptum, Organum



O nome. O meu nome que na tua voz é fatal.

No início era o nome. O meu nome depois do teu.

- Quantas vezes me chamaste em aflição?
Um dia recordo o eco das tuas palavras e noutro penso esquecer o som trazido pelos teus passos quando, no dia em que te abandonei.

Sabes? Uma vida inteira é demasiado pequena para uma mulher como tu - bebes do sangue, ou

para um homem como eu, para um tempo tão e extremamente extenso, distante que nos alonga e desfia continuamente. Repetidadamente, inexorável e irrepreensível. Sucumbo devagar e lentamente, cabisbaixo como o teu do teu silenciar.

- Quantas vezes disseste o meu nome?
- Quantas me mataste no início, ao meu nome depois do teu, por verbo, por não palavras,
ou pelo menos, ameaças e sustos de vida eterna. Em que

O meu coração, esqueci-o nesse dia. À pressa fugi para dentro daquelas quatro paredes, recordações de quem fomos e escrevi-te uma despedida.

Depois, mais tarde, sei que nunca a chegaste a receber. Não leste a primeira linha do destino e da vida nem sequer choraste sobre a minha assinatura. Confesso, o silêncio da noite em que partiste foi sempre o nosso revolvér sem balas. Um tiro no escuro, falhei. Tu escapaste. Estás viva como sempre quis. Mesmo assim eu fatal na tua boca cada vez que me pronunciaste.

No fim, depois do nome de início, o meu depois do teu, terminava assim a história:

" os teus lábios são o género de veneno mais doce e mortífero que em mim existe. Não os sinto ou deles preciso sem que eles me descubram antes de ti. Os teus beijos são o inferno em tons paraíso, fórmula química perfeita que agora, em fase terminal, não prescindo. De lembrar-te para que os feches sobre a minha memória. "

A noite carregada de nuvens, em seguida, fez-se sombra sobre o papel. Sobrenome.

O teu.

domingo, 31 de agosto de 2008

sem Pegadas em Olissipo





Longe da cidade, afasto-me das suas margens e parto para o centro de um outro lugar. Respiro o sal temperado e estival, e faço-me descalço sobre a brisa de areia à beira-mar.
Em si, a representação maior do litoral é um retrato vazio. Já sem pessoas e chapéus coloridos a povoar em sua medida. Sem ninguém, película fotográfica que recorto depois do sol se pôr. Há

o mesmo muro marginal, aquela mesma erguida fortaleza – inactiva e que flutua pelo passado – um pouco mais envelhecida, cada vez mais as mesmas praças e as suas vias afluentes íngremes e estreitas, sempre as mesmas rugas iguais. A calçada à portuguesa são somente pedras negras e brancas num único traçado. E a habitar a memória, o mesmo pontão de sempre, atravessando desmedidamente as marés matinais, de todas as vezes. Cada rocha é um improvisado descanso à mercê do horizonte, essa linha recta quase dirigida a sul, ficando para o norte desnorteado sentido de outros movimentos outros rostos – de aspecto panorâmico.

Lembrar-me que o céu, daqui, é mais límpido e quase a deixar transparecer a sua película mais fina. Uma vez por ano,
o ciclo repete-se.

Faz-se as malas como se tivesse hora marcada para fugir, desde sempre no mesmo porto. Ou ponto de partida, perspectiva emocional que marca o momento da viagem.

Arruma-se uma parte da vida em dois ou três ensejos e numa túnica de desejos reencontro o destino com a espera já consumada.

Esquece-se as luzes e o som dos dias anteriores, e todo um hábito se desabitua – temporariamente - com a expugnação da minha metamorfose. Uma vez por ano, o ciclo repete-se, longe da cidade, como se fugisse à mesma hora que pretendo chegar, mais tarde. Consciente que o regresso dará por terminada a evasão física e mental, a que me julgo perante o universo imaterial e filosófico do âmago da própria evasiva. É o que chamo – a liturgia do sossego. Porventura, a paz interior que reassumo durante a real ausência e o falso esquecimento. As amarras folgam de forma muito ligeira o corpo, agora solto, e a odisseia do pescador é um chamamento de liberdade que indicio enredado apenas pela sua esgotável brevidade. E paciência. De resto, há
o que se mantém e a prudente continuidade de datas contra o calendário, sem clamor. Porque a geometria visível tem a força altruísta da anamnese do tempo feita de tempo, por si só. De resto, embora latejante a diferença entre terra de homens do mar e terra de homens terrestres, há

sempre um Verão em que sobra em água tudo aquilo que o homem constrói ou pode destruir. Há o inevitável toque com a palavra na fase de todos os eclipses. A palavra escrita repetindo o seu merecido esplendor na importância em que revela muito mais que a sua autónoma identidade, como amantes que não se conseguem olhar nos olhos senão quando se separam para se puderem conhecer novamente. Mas
era uma criança que já nessa altura escrevia os meus passos neste reencaminhar para a minha segunda casa. E hoje, no caminho inverso – adverso seria arriscar demasiado – e essa reconhecível juventude parece aguardar por mim à porta, até à criança outra vez.

Algumas imagens que são como o primeiro álbum de fotografias com que me deparei anos depois, frente a frente os primeiros versos como o primeiro livro em que sonhei e sofri os primeiros poemas, e que jamais seria capaz de os querer apagar mas que não reli, desde então

o vento gelado vindo do lado mar. Recupero as histórias de frotas embaladas ao colo da esperança. Da minha – talvez – ilusão. Essa inexplicável paixão de quem retoma à sua morada, ao chão firme, à vedação verde e à pureza dos dias sem que houvesse nevoeiro. E o conhecimento de quem anuncia a jornada que começa ainda nocturna e finda com o dia já composto. Aí,

o mar abraça o cansaço, envolvendo cada dor numa camuflagem cada vez mais ténue, e pequena. Um dia à distância da terra, da gente. Em alto farol, uma pena de risco com um travo a propósito, desconhecido mais que incerto. Este, o – meu – pensar mergulhado numa cadeira metal e sombra reflexo, ao largo dos marinheiros virada a este para o índigo das suas almas, em descanso.

Assim o diz, a placa rectângulo em mármore nessa homenagem tão justa e solene capaz de conter as lágrimas das mulheres e suster os amargos à proa do barco dos companheiros que antes os viram partir. Nessa fuga insolente sem hora marcada, acrescento ao lamento. Sem que tornem a ser os bens aventurados, um outro dia, os retornados. A singular e exclusiva herança deixada

é uma imensa saudade desse oceano inalterado face às estações trazidas pela corrente. Mas era uma criança que nostálgica, me velava de olhares a limpo como se largasse as cordas do meu coração em direcção à costa, por um indício de génio e corpo inteiro – deixando-me adormecer sob o astro-rei a uma temperatura plena de sede. Esta criança, essa

que trago comigo é a mesma que me nomeia em todas as pulsações a que pertenço e a que me faço intacto. Tão nuclear como um pedaço de um búzio partido arremessado à força contra a inutilidade. A trajectória desse impulso que voa a direito, que paira tangente à água esbranquiçada, cuspida na forma de espuma por uma boca distante. Sou esta substância de célula sazonal, cavando o meu trecho musical fechado sobre a pauta – a compasso no desfecho da composição. Abrem-se os signos, e qual abutre cirúrgico na secura da carne. Porque a implosão dá-se simplesmente no instante em que o seu rumo se perde na comunhão. Como se parasse, como se instantâneo, cada coisa se refinasse noutra coisa – palavra perdida algures no fundo para chegar até si, no futuro, e desfiando-lhe as rédeas a relançasse para longe, numa última oportunidade, num desafio à lógica ainda mais profunda. Ainda com mais certeza de que outros além-mar farão o mesmo. No meio

deste imaginário e o mundo adquire uma máscara de diferentes tonalidades. A superfície tolda-se lucidez sem amarrotado desespero nem remendada ansiedade. A rasgos, é uma manhã passado muito tempo, e em que brilha o alcatrão da rua junto dos seus homens do leme. Exaltam-se os risos, engrandece-se a alegria agora infinita, testemunho o afecto dos graúdos à mesa – enquanto há miúdos que brincam – bebendo e comendo até ao fim da vida, num claro sinal de que poderia terminar-se nessa imagem segura de felicidade. Ao ouvido

ouço segredos passivos numa música de noite amena. Pestanejo as constelações que avizinho resultantes da neblina entretanto, ausente. De facto, é uma noite musicalmente amena a que se estende – e entendo – num grau superior à geografia mental, insubmissa como pano de fundo à cogitação dos astros. Permaneço um pouco mais sentado e deixando por cá o rasto da minha quietude. Este lugar que resiste plácido num misto calmo de solidão e abnegado cuidado. Há
caras de pessoas que por aqui passam sempre que cá venho, todas as noites que cá estou. Os dobrados pedidos a que os vícios se habituam. À priori

observá-los desde o exterior é como revisitar-lhes estranhamente os movimentos da noite anterior – como remexer nas entranhas do distinguível e do que não se transfigura em mais nada. As roupas os semblantes as expressões, numa amálgama à posteriori da madrugada igualmente tardia. Sorriem devagar e bebem com gosto. Espelham, também, a coragem da existência resguardada de humildes trajes e em que o mais pesado fardo serão – são – as vicissitudes das escolhas de cada um. Serão os indivíduos que não conheço mesmo sabendo quem são, órfãos de nome mas que aprecio nesse convívio especial, malhado de contos e histórias respeitáveis. Sem ponta presa à agulha, nunca se deixam terminar. Até porque

transportam um clima imprevisto aos ombros sem que outras insignificâncias ou sabedorias interfiram com a sua pacatez. Confesso que sempre que os escuto pouco me importa o vocabulário que lhes padece de rigor ou os conceitos com que à sua vontade reclamam para si os amigos ouvintes ou os meros conhecidos e curiosos – como eu – prestando-lhes a atenção numa gargalhada excedente. Resumo-me
a figura de uma alegoria que não é a minha, embora aprendendo a sua linguagem me converta em silêncio o mérito de tão hábil palestra. É sempre assim,
de que jeito ou feito, uma vez por ano ao balcão, aquando o ciclo recomeça.
Saúde. É

sempre assim que se brinda. Embatem-se os copos contra as garrafas ou vice-versa, apuram-se estados líquidos em estados de espírito semelhantes. Reparte-se a despesa e partilha-se o derradeiro gole juntamente – porque não justamente, sim – com despedidas a conta gotas que devagar e ebriamente se vão calando vozes abaixo.

Fecho os olhos

postos no alcance de algumas gaivotas itinerantes. Próximo do céu e fonte da íris, o prenúncio de um náufrago é uma firmeza impossível de objectos e contornos bem vivos, que casualmente afiguram texturas - quasi - fantasmagóricas. Para amanhã,
previsão de preia-mar durante o maior período luminoso e baixa-mar num abrandamento meteorológico para o final da tarde. Estendido no areal
até que a onda se corrija na paisagem – partículas que expressam a terra na sua habilidade. Penso
abrigado por um rumor agitado. O tecido na rede queimada pelo isco azulado
de anzol que abre a fenda primordial do levante. Vento que suspira que respira comigo, até que

quando os abrir vou ver a cidade como sempre a deixei.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Intrelude


Quando se devia ter dito algo mais
as palavras fecharam-se dentro da boca
em nome do medo e do sonho desfeito
em que o silêncio pesava e rasgava
todas as frases construídas a sós
nesse retrato de solidões
nómadas que iam para lá e ainda além
numa troca emocional escondida e cega

Quando se tinha a vida e o tempo fugia
sem que se desse conta do relógio
a contas atrasar-se cada vez tanto
na direcção oposta
aos ponteiros que delicadamente
se recompunham no seu lugar
ainda que nenhum lugar
fosse capaz de suster o ímpeto
a força e a urgência
das partidas de amor inocente e
paixão ópio crente que
sugava os dias distantes às noites
próximas à manhã por acaso

Quando se envergaram armas
nessa luta desleal de paz
a memória esquecia gestos
no fenómeno quente do sono
frio no seu revés de tangente
que separava à força tudo como se
quem desaguasse por obrigação
nos choros amargos do
que não se dizia nem foi dito
ou do que não foi feito
por medo quase nem existiu

Quando o fracasso caíra
em tiras de papel pelos dedos
no quarto escuro da alma
voava uma revolta terminal
e gemidos tristes e baixos
outrora sorrir parado
em frente à lente da câmara
lenta de afectos quando
cada palavra pertencia à sua estação
de destino já traçado a
preto no branco como
vestígios pequenos de olhos abertos
aquando o silêncio haveria
de ter sido morto e enterrado

comigo
.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Amor em dez actos ou em (dez)encontros de Amor


1.Ela não a dizia, não a pronunciava. Ela não gostava do seu significado nem sabia do seu sentido. Ela conheceu-o quando um dia, à beira de Mazurka entrecruzou o seu campo visual com a atenção dele. Trocaram de papéis, enquanto ela observava cada pormenor parecia que ele lhe tocava em uníssono os seus cinco sentidos. À primeira vista, ela pensou que seria um fracasso. “Não me vou apaixonar. Recuso-me a ceder perante o que não acredito”.

2.Ele procurou-a no final. Abriu portas e atravessou corredores. Perguntou a quem passava se a conheciam. Houve quem não respondesse, houve quem sorrisse sem saber. De todas, uma conclusão apenas: desconhecida e invisível. Quem seria? Suspirou.

3.Entretanto, no meio da sala vazia, um ângulo de noventa graus refazia no palco uma imagem, equivalente à área de incisão da própria luz projectada. Como se ao espelho, ela se visse esbatida e desfocada, ligeiramente. Ela queria saber quem era ele ainda que o reprimisse. E o recusasse quase escrupulosamente. “Desaparece daqui” – Pensou. Desceu os degraus apressadamente e encaminhou-se para a saída.

4.À entrada do teatro, ele permanecia de pé. Não se sentia preparado para ir embora. Não sabia que razão o mantinha ali. Calado, seguia a trajectória das luzes móveis que contrapunham o seu pensamento. Algo lhe dizia que a preservação das espécies é que compõe a continuidade das gerações – estranhou tal inesperado conflito interior, um dois minutos. Afastou qualquer hipótese de raciocínio, de seguida. Acalmou a súbita ilusão de a reencontrar e num instinto, virou a rua à direita e começou a andar.

5.O maior mistério é o mistério em si. Ela transpondo o último degrau em terra firme. Dirige-se para o exterior sem que dúvidas houvessem. Nem do que aconteceu nem do poderia ter acontecido. Mas aconteceu alguma coisa? – Recusava-se a acreditar. Retirava dos ombros o peso de uma aproximação que não desejava, de um desejo que a arrasaria outra vez. Não. E no entanto, o verbo querer em que a revelação é a primeira chama. De braço erguido ao céu tenta chamar um táxi. No barulho das cidades o silêncio é a melhor forma de nos fazermos ouvir, mas o homem não repara à medida que ela lhe acompanha o movimento. É neste instante de perda que ela o reconhece, a ele, na roupa que leva vestido. Ao longe. Surpreende-se com a fiabilidade com que o seu corpo se dirige para ele num impulso autónomo e sem esclarecimento. “Espera!”.

É Inverno.

6.Sentados frente a frente olham-se e descobrem-se. A um e outro. Ela vai tentando fugir das perguntas dele. Ele vai tentando dar-lhe todas as respostas que ela nunca ouvira. Ou preferira não saber. «Porque tens tanto medo?» pergunta dele. «O mais importante é cada coisa sem a sua cedência e rendição» responde-lhe ela. E ficam a olhar-se sem que mais nenhuma palavra os destape, ou melhor, aquela palavra que ela não há-de proferir – os encubra dentro de si mesmos.

7.Pela rua, vão remediando o caminho num atraso de frases soltas e flagrante disponibilidade. Ela esforça-se pelo incómodo que o sentimento por ele lhe transmite. Ele, apercebe-se que uma mulher que demonstre sofrer, é mais do que um mundo ao qual ele poderá ou não pertencer. A decisão estava nas mãos dela. Ele tenta abraçá-la. Ineficaz. A noite cai-lhes entre os braços enquanto se afastam e separam. Até quando?

É Inverno. Quando faz frio na velhice dos dias.

8.Encostados a um prédio alto falam sobre os precipícios da vida. Das suas vidas e existências de hoje. Ela «e a coragem que tenho para me negar ao Homem», ele «e a sorte que não tenho com Mulher alguma». Um momento. Param. E observam-se mutuamente como já antes fizeram. Seguram a vertigem partilhada nos olhares que detêm. Ela, mais frágil. Ele, inquietantemente inseguro. O que é o Amor? O que é o Amor? Olhos nos olhos.

9.«Não poderei dizer que te amo» diz-lhe ela. Nunca? «Acaso eu não quisesse que o pudesses dizer, o que dirias?» questiona-lhe ele. Nada.

10.O céu fecha-se sobre o mar. O mar adormece no azul-escuro do céu. A fragrância suburbana é um sopro de gotas fundas que passam de um e de outro como quem viaja na intenção do regresso. Mas, qual deles se abandonará primeiro? A suspeita do coração no lugar da boca, dela. A certeza do vazio a aumentar. Ele. A dúvida. E por ela, o afogamento. Adensa-se a despedida. E não resta nenhuma sensação de alívio. Sem se tocarem, o prelúdio de cada um dos seus fantasmas é uma alucinação pela qual lutariam, houvesse tempo. Ou se o mundo não fosse mudo.

É Inverno.

(Ao fundo, escuta-se Chopin no limite da madrugada. No limiar da Primavera).

sábado, 21 de junho de 2008

Requiem


Os passos marcham descalços à mesma distância entre luz e treva, enquanto isso só o canto triste da terra se inunda e ecoa. Lá fora há um ar quente que ateia a copa das árvores, no cimo da queda em que tombam desfeitas sobre os olhares insónia. A cabeça arde, parece febril. Doente, a doença passeia-se na pele pela noite como uma sombra vulgar. Ninguém

a sente mas tudo sabe da sua presença. Os corpos, as cinzas. E há quem cheire o aroma que seduz os deprimidos e enfraquece os solitários. Ela que continuamente prossegue a contaminação iminente das vozes. São palavras em volta de saliva e bocas que se esquecem do que dizer a seguir. São murmúrios que não percebem a constelação lunar. Numa imagem, a lua está alta

os lobos uivam de raiva e desgosto nos becos e esquinas da vida. Aguardam. Escondidos detrás dos vidros suspendem-se até à passagem da próxima vítima, à chegada. Por vezes, ainda no limbo dessa linha estreita que mede o limite, a sanidade e o delírio. São animais ferozes e esfomeados. Que desesperam. A noite é um lugar inexplorado, enquanto a lua brilhar no alto, em toda e qualquer despedida

por ruas que se alongam umas às outras. Vai ficando maior a ausência, apenas ermos escuros de sons mudos e vértebras de fogo, a solidão a combustão do esplendor e o seu arrastamento em forma de brisa. Morna. Quase que alguém se sufoca de memórias, de golpes findos e feridas essenciais. E quem, de que corpo de cinzas, se poderá sequer lembrar que a memória morre sempre que a nostalgia desaparece

em pó. Embora sobeje a navalha e o corte, a lâmina e o sangue. Embora a vida. São gotas de uma dor oculta que durante o exercício do tempo se mantém à margem. Encoberta que foi, por nuvens de um tom cinzento e sombrio. Embora a vida seja uma mágoa em formas de contorno incolor, finalmente caída sobre o chão. Embora a vida resvale no abismo de segundos entre um suspiro amordaçado

o escutar de um forte gemido, largo e constante em que gradualmente a vida se desgasta e descendente, em sopro invariável se torna. Em vão. As pálpebras que se abrem lentamente nos imensos olhares submersos e enevoados da madrugada. Um corpo inerte, nesse corpo de cinzas sem passado e o desfecho de uma alma como tantas outras, entretanto que decide fugir

já sem movimentos, sem oxigénio sem que seja elevado o grau de pureza do gesto e da reacção. A atmosfera adensa-se de sinais de emergência, de uma clara cegueira em que é urgente recuar cada instante para aproximar cada hora, não fosse tarde demais na noite que dorme profunda e na cicatriz da lua no azul há um coração

que já não bate nervoso nem veias que incham de inquietação. Assim, a secura das coisas perece com a mesma facilidade com que as lágrimas abandonam as expressões. O sorrir é de mármore e encerra todos os futuros impossíveis. Sem amor, ela fecha-se no interior da aurora distante sem sobra de luz, e finge semelhanças para amortecer a saudade e vencer a verdade

seja qual for.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Cama nº 17





Um quarto cercado por paredes completas. Quatro por quarto. E à saída de uma porta ténue um balcão de pessoas de bata branca, sentadas. À espera. Como toda a gente. Os visitantes e os visitados. A família. E os seus doentes. Os que esperam face aos que desesperam

numa campainha que soa quando um deles exclama de dor.

«Não aguento mais isto» desabafa,

nos suspiros que abafa sem ninguém. Porque demoram sempre aquela breve eternidade entre o alívio e o limite as pessoas de bata branca, andando pesadamente sobre o ofício e a diligência de estarem em vários lugares dentro do mesmo instante – sem que estejamos

«Alguém me está a ouvir» reprime a retórica de uma pergunta impaciente,

a dor de não aguentar mais aquilo, não suportar mais aquilo e por isto a voz torna-se no eco da própria voz a par da súplica. Como se não bastasse as mulheres e os filhos, os mais próximos que continuam à espera pelos corredores

às voltas, adiando a vida em tudo o que nela não se explica. A confusão do deambular, presos entre texturas de paisagens belas e irracionais espalhadas pelos cantos, molduras de uma imagem em tons que o cinzento não traduz.

«Por favor»

um grito de ajuda no meio de tanta gente para que se ouça até que seja a insistência de quem deitado sobre a cama não tem a noção do corpo a deixar-lhe de pertencer, a deixar-se ficar para o lado, tímido e sem razão

«Por favor»

alguém que entra, finalmente, de bata branca e mãos nos bolsos cozidos aos quadrados, perfeições da geometria incompreendida dos que sucumbem às vezes num ápice às tenazes e ao f(r)io da ciência.

«Tenha calma que o doutor já vem e vê o que se passa» esse misto de uma esperança falível e uma contingência que assim se obriga. «Tenha paciência» mas como. Como?

Paciência e calma são direcções contrárias ao curso que o oxigénio pulsa através dos tubos. Da algália que limita a mais básica necessidade. Dos braços malhados de nódoas negras por todas as tentativas.

Do choque. Do resultado dos exames

e o coração débil pela operação ao

«Não me diga que tenho “isso”. Não quero saber “disso”.» Um cancro nos rins. A hemodiálise desde há anos que de nada serviu. A dor resultante do esforço de uma operação que parecia
«Correu tudo bem, dentro do normal» o cenário mais esperado. A pessoa de bata branca a entrar pelo quarto, cercado de quatro paredes e com alguém a pedir socorro, a implorar que lhe removam a dor de uma vez por todas. Por querer ficar bem, dentro do que é normal claro está, a recuperação de uma autonomia entretanto perdida algures no caminho da idade.

«Senhor doutor não me sinto muito bem, veja lá se» conseguíssemos, pudéssemos reabilitar todas as funções do organismo com que nascemos e ficar assim para sempre. Não, e é triste. As metástases a roer, a corroer, a morder por dentro e a alastrarem-se para o mais inóspito lugar. Pura biologia, tamanha anatomia.

«Não se preocupe que vamos fazer todos os possíveis»

e nisto o que se pode fazer, nós os amigos e familiares, as mulheres e filhos apenas esperar. Esperar mais um pouco. Não tarda e tudo volta ao que era. Não tarda e já nos deixam entrar para a visita. Porque já está mais que na hora. E trazem-se as bolachas preferidas para o lanche. Um caixa inteira de. Fé?

não é assim? A fé devota-se numa igreja, sim. Mas e num Hospital ou na Unidade de Cuidados Intensivos «pós bloco operatório» qual postura e atitude se deve ter e demonstrar em qualquer um destes abismos à religião. A legitimidade de rezar para que seja suportável o desconhecido. Imerecido, penso

«como lhe agradeço senhor doutor, já me sinto melhor» na voz de quem reconhece que a sua mortalidade foi salva por uma fracção de tempo. É justo.

E não faz sentido aquando da altura de ir embora, familiares e amigos, os mais próximos mulher e filho que não se despedem, porque é duro partir. Injusta a despedida. E no entanto, o amanhã – sonha-se, é já ali, quando no corredor recomeçarem as voltas e a deambulação de toda a espera. Contudo, os olhos padecidos e a pele amarelada tocam-se muito depressa, na ponta dos dedos, sobre o antebraço, e um sono que imita o sossego que a alma desmente. O aviso das pessoas de bata branca é um sinal

«agora tem mesmo de ser» pois bem.

Um último beijo. Quem sabe, às vezes nessa fatalidade da últimas coisas, um olhar já desacreditado de brilho e fluidez. A lucidez com que se mascaram os que esperam face aos que desesperam. As palavras tão pequeninas que mal se ouvem mas que lá se sabem de cor. E depois

o silêncio a retomar o quarto, cercado por paredes completas. Quatro por quatro. Antes da noite e do repouso a refeição obrigatória. E cedo, tão precocemente, a madrugada ainda de luzes lá fora a latejar naquelas circunstâncias. Interiormente e muito densa. Uma «situação inesperada» rima com morte. Assim. Sem mais nem menos, dirão no turno de enfermeiras e auxiliares presentes, com uma bata quase branca

Assim. Sem porquês nem remédio

cerca das oito da manhã do amanhã que nunca existiu «porque não foi possível reanimar a tempo». Sem dó nem piedade.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Do consolo e da lamentação do amante triste


"Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza." - Pablo Neruda




Como gostaria de ser, por vezes, a minha voz dentro da tua boca e dizer as palavras que gostaria de ouvir. A voz que me faz bem. Quando de ti se escuta a explicação do voo

na sua origem, matriz. Raiz e

Como gostaria de ser as imagens que passam pelos teus olhos abertos na distância entre a imagem visível e o real do teu imaginário. Diário, ilusão

como gostaria de habitar, em certos segundos, o abismo secreto do teu coração. Sentir os ventos que te baloiçam na paisagem da vida, o sol que te queima o pensamento quando o fechas num gesto mais agudo ou num grave tom de silêncio

como, porquê, tens razões para ser ave muda? Perguntar-te-ia, a ti

bem lá no alto, no céu depois do mar, abraçado ao sal que largaste na tua viragem, a pique, de repente quase que uma asa me poderia responder

voando e voando cada vez mais veloz,

como gostaria de ser a tua boca, na minha boca calada pelo beijo sem palavras que

escasseia, aproxima-se mas vagueia às voltas, em círculos pelos lugares por onde passo, rente ao espelhos retratos entristecidos no tempo, na clara superfície terrestre sempre presente no esboço que a memória tende a recriar, novamente

como gostaria de ser mais pele, a tua, o arrepio, o frio e o calor que te mordem noite e dia em brando sobressalto, sonho inconsciente

alma e espírito contentes, o meu sorriso no contorno do teu sorrir, a tua boca sobre a minha no mesmo toque, a palavra e o seu par, a tua visão de mundo conforme o mundo visto por mim,

A tua explicação, como gostaria de ser parte da explicação das linhas que traças ao longe

bem de perto, vertigem e desequilíbrio e queda possível embora ampares a base do meu corpo em direcção a ti, bem lá no alto depois do mar,

voando e voando

abrindo o azul transversal e crescendo acentuadamente, voando e voando

- conduz o meu raciocínio

como gostaria de entrar dentro de ti, ficar e deixar-me estar tangente aos mistérios que resguardas de ti mesma, e ficar sabendo o que é estar intrinsecamente no teu

amor, disperso pelos cinco sentidos. Consumido e ao mesmo tempo devorado. A teu lado.

domingo, 23 de março de 2008

Dies Solis


Noites num mesmo pensamento. Num ligeiro sopro, profundo e infinito.

Quase que de olhos vendados, da boca ao ouvido num segredar discreto

às cegas e às escuras condenado
como que amarrado às cicatrizes e às impossibilidades

desejadas
de cada grito interior.

Branco. Qual a cor do sentir?

A tonalidade profana das emoções? Quando é tudo branco?

Ou quando tudo sobeja o branco?

A negro, houvesse um desfecho para a consciência, e
da demência, que razão?

Mais: as vozes que ouço não são as vozes que procuro. Embora a reflexão seja feita através de imagens. E de mãos, que as trago cheias de derrotas.

Algumas, âmbar e fragmentos de frágeis momentos a

branco.

Nessa noite escura,
em Inverno nos olhares tristes de todos os que nunca conheci.

Chovem dilúvios, há neve nas ruas.
A pele antecipa o sol, nas folhas que estão por escrever, frias.

E indiferentes ao gelo, as lágrimas ocupam sempre um estranho lugar
na brancura dos dias que se repetem madrugadoramente.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Fados





I

Nada mais me desespera
quanto uma guitarra de silêncio,
desgarrada
na voz da rapariga pálida que à janela
expõe os versos da (sua) vida parada.

Sempre que passo à beira do esquecimento
dos finais de tarde,
carrego nos ombros os dias de trabalho;
tão próximos do cansaço e da rotina.

E, assim, avanço por essas ruas calcetadas
por pedreiros e homens falecidos,
também eles esquecidos, em cada passo
que se pisa sobre a obra.

As escadas estreitas,
o alcatrão esbatido ao sol
na sombra íngreme de (…)
e as pessoas velhas

- de cabelos brancos e olhares baços -

presas
ao beiral das suas casas pequenas
cheias de murmúrios lentos,
antigos,
de vozes (es)corridas de experiência;

E, na minha impaciência,
de às vezes
alongo-me no torpor fumegado da caminhada de regresso

observando-te

inerte e perdida em versos
que a idade não te deixou calar.

Cantas como sempre te conheci,
e ao ouvir-te
sinto-me como se nunca encontrasse
o caminho de casa.


II

Recorro aos bolsos do casaco do tempo.

Toco as chaves,
mas pressinto o vazio das minhas
horas,
de ventos e sopros longos de ninguém.

Não quero, já
saber quem me fala
nem que outras bocas tentam
dizer qualquer coisa.

Não quero, ainda
responder,
prefiro ouvir (…)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Em dó maior



Um mês. Depois. A escrita. Nos vazios. Maldita. A espaços. Nesta minha voz. Surda. O meu túmulo impróprio. De palavras guardadas. Que me fugiram. Pelas artérias plenas. Do silêncio. Da perenidade.

Serás tu mais vulnerável que a minha fragilidade?

Por essa cegueira. Das noites infinitas. Que me denunciaram espectros. De sílabas. Imóveis. De dentro. Muito internamente. Em cada uma das bocas. Fechadas. Numa súplica:

"Sinto a poesia a alastrar-se, lentíssima, para o vale onde se dirige. Só."

O afastamento. Que alimento através de ti. De mim. Para comigo e em todos vós. Para contigo. Em moldes concretos de uma efeméride. Uma promessa. A asfixia. E a vontade. A melancolia. Numa única linha. Quebrante. Invisível. E errante. Mais ainda. O fracasso. Mas. Devagar.

O envolvimento. Da manhã nebulosa. Com a neblina. Em circunferências. De vapor. De água. De um presságio. Um vestígio. Da noite cálida. E transparente. Antecedente. E ascendente. A absolvição da utopia. O requiem doloroso. Intervalo. À abstinência. Da realidade. Do real. Eu disse-lhe. À dor
:

Um dia, previ. Sonhei que batias à porta e eu calmamente te abriria a janela daquilo que guardo. Nos olhos que nunca viste. Nos rostos e nas máscaras de outros que jamais destapaste. Sinto-me arrefecida, dizias. As minhas mãos quentes num rasto de cinza sobre a roupa. Sob a pele. Com muito medo de te queimar. Tenho coragem. E não te hei nunca de incendiar. Mas prefiro que te extingas comigo do que desapareças sem mim.

Eram apenas previsões, que um dia imaginei. Dormente de alma e entorpecido nas palavras que o sono denunciava. Perdoa-me, mas não sou capaz de deixar de escrever mesmo deitado à tua espera. Que não vens porque te deixas esgotar noutra madrugada. Não sei se chovia no teu peito ou se irradiavas sol nas tuas afeições, que não sei descrever-te de outra forma.

Tanto que o meu sonho era um feixe de luz que me encadeara dessa vez. E no fundo, bastou um dia para te distinguir. Soube quem foste e quem eras, mais de resto não. Tudo transforma-se em nada, repetias - nesses suspiros de lua que deitavas fora. E muito raramente tos ouvi. Até porque enquanto sonhava, tu estavas longe. Tão longe que não poderás entender como respiras apressada à medida que as tuas lágrimas me encharcavam. Afogado e resgatado mais tarde, recordo. Primeiro tu, em primeiro lugar és tu quem quis em terra firme. Os braços e as pernas, depois o teu corpo na totalidade, estendido e sem se mexer. Sobrevivente. Porque fazias questão de ser forte. Porque te dizias forte. Sempre forte. E por o seres

a única fraqueza que te descobri está estampada na mágoa que trazes escondida
.

Na verdade. E agora? De hoje. Ouço as cordas do piano. Negras. Cheiros recentes. Marcas da vida. Sonatas ou solidões. Marcantes. Negras. Porque o passado. Fica? Voa. Livremente. Preso nas asas de um pássaro evidente. Límpido o traçar presente. Da sua vaga de penas. E de asas. De um costume. Num único abandono.

A revelação incerta da lamentação. Sem a menor dúvida. É uma melodia.

Em que habito. E me detenho. Com os pulmões abertos. Pelo ar. Por amor. E por mar.

sábado, 12 de janeiro de 2008

In Memoriam


Para ti, amigo
de luto, luto eu também.




Agride-me na lápide da minha consciência a não razão:

Decidiste partir antes do tempo. E deixas-me contigo num rasto de vida prematuramente interrompida.

Como dizer-te todas estas coisas que trago presas no silêncio da voz? Como te posso falar sem que me ouças na tua compreensão adulta e fraterna?

Sinto que estou errado, em tempo espaço e lugar. Em combate num embate de contradições. Não há forma que não seja a tua pessoa. Nem sequer na certeza da qual me perdi, sem saber-te na previsão de uma hora ou de um outro dia.

Queria que me arrastassem até junto a ti, novamente, para que nascendo nos teus braços pudesse dizer que foste o melhor Pai que podia ter tido.

E se em algum momento não o soube, Desculpa.

Queria adormecer sob o teu coração na ternura e na junção de te ter comigo, de novo, sabendo que sou o teu filho, que me reconheces em todos os meus gestos e feições e que fui o filho que sempre quiseste como o melhor Pai que alguma vez pude ter.

Fere-me a tua impossibilidade. O teu rosto a ficar cada vez mais magro em tempo seguido. A fragilidade dos teus abraços que ainda senti na força imposta dos meus.

Porque me magoa tanto a doença

- A cama e os lençóis brancos, os horários a que não regressarei nunca mais. Porque não quero refazer os meus passos nesse sentido do fracasso. Seja rever-te debilitado ou de ter que não te ouvir dizer uma única palavra. O estado amorfo dos teus olhos, agora sempre tão tristes e as doses químicas a que te sujeitavas – nunca mais - ao menos por uma expressão de paternidade. Não quero redescobrir esse cheiro de pele queimada pela cinza que foi o meu sopro, no teu fim.

Quero que aceites a minha gratidão. A sinceridade o mais possível de olhos nos olhos te dizer que fomos uma vitória. Um e outro. O jeito de sermos dois corpos para a mesma alma. Duas existências consagradas a ocuparem a mesma identidade.

Embora uma mão me aperte o nó da garganta, Pai, não me esqueço cada conversa que tínhamos, soltas as aves no seu primeiro voo. E de todas as aprendizagens que me ensinaste, a mais difícil é porque não me despeço de ti. Nem hoje nem jamais.

Apesar da solidão, Pai, não sei recordar-te que não seja desde a primeira respiração até à última imagem: a tua presença. O facto de contar contigo para cair e levantar-me ao darmos as mãos. O chorar e o rir sem importância. Mais: o tanto que a morte de um pouco tanto de mim abdica na tua ausência.

Porque se me deixas desta maneira é sem volta. Tu não regressarás nem eu irei pelo mesmo caminho.

Quero ser forte mas como o faço, Pai?

Pudesse eu sentar-me a teu lado, neste instante já. Escutar com atenção o que guardas para os últimos segundos. Eu que nada consigo ter nem dar, por agora.

Desculpa.

Manhã de noite. Madrugada ofuscantemente clara. Quase que me cega a tua falta que não te posso demonstrar. Pudesse frente a frente pedir-te para ficares durante mais alguns anos. Tantos os que imagino em diante e tos queria oferecer de testamento. Porque o que receber de futuro será - com o devido respeito - o resultado da tua estadia na minha caminhada. O guia desta viagem que desconheço mas que se assim me conheço e contigo pareço: o teu filho de ti.

Secam-me as veias na amarga candeia dentro do peito. Houvesse luz daqui a pouco nos sinais com que me deixaste contigo. Houvesse a oportunidade que desejei e procuro:


Arde-me o que não sei escrever nem dizer, Pai


Sobre a tua face de pequenino e no rodar das minhas mãos, aconchego-me da tua carne no meu pesar. Vou ficar o mais próximo possível, de ti, para que não nos abandonaremos em sentido contrário, para que mantidos em paz ficaremos e – como teu hábito de não me deixares errar,para que eu e tu – sejamos a linha entre a terra e o céu. Inseparáveis.

Acredita-me:
enquanto morreste-me, sofro-te

E com todo o amor, beijo-te suave e eternamente.


Teu.