quinta-feira, 10 de abril de 2014

Irrupção (ou as pequenas violências quotidianas)




enquanto espera pela chegada do metro, sentada num dos bancos do subsolo surge-lhe a ideia - não o pensamento mas uma pulsão inconsciente e induzida - de que em determinadas situações a demência pode ser coisa de uma doçura ou estranheza extremas. porque há um jovem que em plena plataforma vai repetindo sistematicamente o nome das estações que são anunciadas por uma voz de gravador. faz tudo isso segurando uma pequena câmara e treme. o tom é mais alto ou mais baixo consoante a intensidade da sua intenção. tem um evidente diastema, por onde lhe passam fios de baba espessa em que ela repara. a maioria acha-o doente, e jovem. outros, ignoram-no nos seus casulos de perturbação incómoda. já ela, atenta enquanto espera e fomenta ideias, era capaz de lhe sorrir para a fotografia. acaso quisesse provocar nele um reagente inesperado. desiste. o improviso pode causar danos irreversíveis, é um modo secundário de atingir fins sem meios nenhuns. isso foi o que pensou. com recurso à projecção dual da mente humana. e ainda, a espera. à medida que aumentava, outras imagens iam-lhe povoando o espaço. nas escadas de acesso ao terminal, igualmente jovens e ilusoriamente belos, um casal de namorados estudantis - com mochilas e casacos pendurados ao ombro, no caso dele, barriga destapada com uma pérola barata no que devia ser um umbigo, no caso dela - roubavam duplamente em boca comum o que vagamente se chama beijo. as zonas gravíticas giravam, às vezes era apenas um jogo de aproximação e distâncias, uma mão subia e outra mão descia. chegavam a desaparecer para ressurgir noutro ponto diferente do corpo em aprendizagem. ela, fixa nesse senso comum da carne e de como aquilo se impunha à sua própria sensualidade, desencadeou em si pequenos flagelos físicos que neles personificava. os dois funcionam como amplexo: frontal e à guarda. alimentam-se de simulacros e de instinto animal, ele lidera se ela se deixa dominar. depois ela é quem assume a liderança se ele se permite a ficar mais indefeso. o funcionamento sexual de dois bichos da seda ante o bater das asas da fase seguinte. porque todos os estádios requerem tempo para se desenvolver, também eles seriam sujeitos ao que o tempo quisesse deles. olhou-os de novo, e não pensando nos territórios da raça e dos credos, facilmente recuperou a concepção de que algumas raízes só podem crescer na base do que não é normal. a espera em avançado delito, quase finita. o som precede a chegada. sobre os carris, umas faíscas de quem ensaia os mesmos gestos todos os dias. a multidão avança, as pernas de toda a gente avançam como ponteiros de horas certas mas inexatas entre si. passa-se tudo muito rápido, entre o parar e o abrir de portas. o sinal emergente de fecho e o vácuo que fica depois da debandada. a mulher, fica sentada. sem querer - repete uma outra voz que parece mecanizada ao fundo, desconhecendo-se a sua origem. quem aparece vem tarde demais. a mulher é apenas uma pose cessante. e ao seu lado esquerdo, o casaco deposto na madeira como o repouso do corpo na verticalidade do osso a prazo que nos sustenta.


domingo, 6 de outubro de 2013

Os Ambivalentes





Reescrever. A escrita. Maldita. A espaços. Nesta voz. Surda. O meu túmulo impróprio. De palavras guardadas. Que me fugiram. Pelas artérias plenas. Do silêncio. Da perenidade. Será mais vulnerável do que a fragilidade?

Por essa cegueira. Das noites infinitas. Que denunciam espectros. De sílabas. Imóveis. De dentro. Muito internamente. Em cada uma das bocas. Fechadas. Numa súplica:


" Sinto a poesia a alastrar-se, lentíssima, para o vale onde se dirige. Só. "


O afastamento. Que se alimenta através e em todos vós. Para convosco. Em moldes concretos de uma efeméride. Uma promessa. A asfixia. E a vontade. A melancolia. Numa única linha. Quebrante. Invisível. E errante. Mais ainda. O fracasso. Mas. Devagar.


O envolvimento. Da manhã nebulosa. Com a neblina. Em circunferências. De vapor. De água. De um presságio. Um vestígio. Da noite cálida. E transparente. Antecedente. E ascendente. A absolvição da utopia. O requiem doloroso. Intervalo. À abstinência. Da realidade. Do real. Eco de dor:

Um dia, previ. Sonhei que batias à porta e eu calmamente te abriria a janela daquilo que guardo. Nos olhos que nunca viste. Nos rostos e nas máscaras de outros que jamais destapaste. Sinto-me arrefecida, dizias. As minhas mãos quentes num rasto de cinza sobre a roupa. Sob a pele. Com muito medo de te queimar. Tenho coragem. E não te hei nunca de incendiar. Mas prefiro que te extingas comigo do que desapareças sem mim. Eram apenas previsões, que um dia imaginei. Dormente de alma e entorpecido nas palavras que o sono denunciava. Perdoa-me, mas não sou capaz de deixar de escrever mesmo deitado à tua espera. Que não vens porque te deixas esgotar noutra madrugada. Não sei se chovia no teu peito ou se irradiavas sol nas tuas afeições, que não sei descrever-te de outra forma. Tanto que o meu sonho era um feixe de luz que me encadeara dessa vez. E no fundo, bastou um dia para te distinguir. Soube quem foste e quem eras, mais de resto não. Tudo transforma-se em nada, repetias - nesses suspiros de lua que deitavas fora. E muito raramente tos ouvi. Até porque enquanto sonhava, tu estavas longe. Tão longe que não poderás entender como respiras apressada à medida que as tuas lágrimas me encharcavam. Afogado e resgatado mais tarde, recordo. Primeiro tu, em primeiro lugar és tu quem quis em terra firme. Os braços e as pernas, depois o teu corpo na totalidade, estendido e sem se mexer. Sobrevivente. Porque fazias questão de ser forte. Porque te dizias forte. e de sempre forte, por o seres, a única fraqueza que te descobri está estampada na mancha que trazes escondida.

Na verdade. E agora? E ontem? De hoje. Ouvem-se as cordas do piano. Negras. Cheiros podres e esquecidos. Marcas da vida. Sonatas ou solidões. Marcantes. Negras. Porque o passado. Voa. Livremente. Nas asas de um pássaro evidente. Presente. Límpido o traçar. Da sua vaga de penas. E de asas. De costumes. Num só e único abandono. Na grandeza que sobrevive ao fazer-se a conta de, ainda, existir.

sábado, 25 de agosto de 2012

a esperança (parte III)



levar a cabo um ideal. podia ser esta uma das definições de esperança. dos que crêem e dos que vão à missa e têm talismãs. dos que já não acreditam, mesmo sendo optimistas em relação a algo maior do que cada um, tendo ou não uma espiritualidade ou até dos que nunca chegarão a acreditar, por mero pessimismo, cansaço ou letargia. levar a cabo o sonho. nas fraquezas que todos temos, nos sinuosos caminhos da mente que nos pretendem enganar ao esquivar da verdade, e nas incertezas cheias de contradições que num ou outro momento são a essência a apontar-nos ao essencial. mas baralhadas as cartas, e volta tudo a dar à raiz, à génese com que emergimos. nada é o  mesmo e pouco é necessariamente igual aquilo que foi. porque ainda há a esperança. e é precisamente sobre ela, a esperança, que me devoto sobre ti. sobre o teu âmago numa linha muito marcada, de devoções aprendizes e medos denominados. sobre o teu ser mulher, desassossegada mas completa, reactiva e também indefesa, nobre e sã de bondade, e sobre ti volto a colocar a estaca no meu peito firmado de fundura e compassos de utopia que vão redesenhando dia a dia a paisagem extensa e benigna de um só. e sobre ela, as esperanças geminadas, o teu tacto rigoroso nas diligências da exactidão e do prevalecente. e sobre mim as melhorias dia a dia, numa aprendizagem indomável de que vale a pena ser esta coisa que tu dizes que sou. seja na troca fluida desse corpo no meu corpo, o teu cisne branco recém-nascido com as velas ainda coladas à pele em membrana de aguarela. seja na tua fonte contorcida de águas límpidas de tantos lagos de outros tantos mares. e eu, sem te apressar, recebendo-o no meu colo em chamas até ao raiar primeiro do primeiro olhar em aberto, rectilíneo, assim que se sente preparado para comigo ficar frente a frente. seja olhos nos olhos, seja cara a cara. a raridade faz o mundo, o amor faz a extravagância do cisne negro em singularidade. faz ronha com as promessas matinais, faz o sono sem bocejo. seja no estremecimento que nos acredita, seja no acreditar em nós, por emulação. porque a esperança, outra vez, advém da espera. e a espera também se faz em movimento. é uma quietude irrequieta e febril e também acontece em segredo. quando duas crianças brincam, inocentes e inesgotáveis. na esperança, de cada uma, a inocência é pura. a ignorância também. esta última, com menos sabedoria. porque a esperança é só o conhecimento proveniente de algumas solidões, do gato de oficina deitado na sua insónia numa obsessão destinada a ser a cura de todos os males. o gato que não dorme enquanto não souber que pode, enfim, descansar. as crianças brincam, o gato não se recolhe, é fiel com as suas garras afiadas rasgando o insuportável clamor da partida e o susto da vida eterna durante as suas sete vidas de um místico encanto. e, todavia, a necessidade de implosão de todos os seus órgãos vitais, isto, numa tentativa de não salvamento, mas de resgate de si mesmo. as crianças retomam a brincadeira durante noites assim, que duram muitas madrugadas. até que o gato esteja pronto e ao dar o salto, concretize a excelência do retorno com o pano de fundo de um poço que vem logo atrás. no teu gato, comigo tu és. nas crianças que adormecem, eu penso ao lado da eternidade. e a esperança enrola-se como nostalgia tão boa de saudade quanto uma camisola às riscas ou um andamento cor de laranja, azulão. e agora?  é já depois. o idílico. a galope de um céu, acima e abaixo, de ver para crer. de (e)levar.