enquanto espera pela chegada do metro, sentada num dos bancos do subsolo surge-lhe a ideia - não o pensamento mas uma pulsão inconsciente e induzida - de que em determinadas situações a demência pode ser coisa de uma doçura ou estranheza extremas. porque há um jovem que em plena plataforma vai repetindo sistematicamente o nome das estações que são anunciadas por uma voz de gravador. faz tudo isso segurando uma pequena câmara e treme. o tom é mais alto ou mais baixo consoante a intensidade da sua intenção. tem um evidente diastema, por onde lhe passam fios de baba espessa em que ela repara. a maioria acha-o doente, e jovem. outros, ignoram-no nos seus casulos de perturbação incómoda. já ela, atenta enquanto espera e fomenta ideias, era capaz de lhe sorrir para a fotografia. acaso quisesse provocar nele um reagente inesperado. desiste. o improviso pode causar danos irreversíveis, é um modo secundário de atingir fins sem meios nenhuns. isso foi o que pensou. com recurso à projecção dual da mente humana. e ainda, a espera. à medida que aumentava, outras imagens iam-lhe povoando o espaço. nas escadas de acesso ao terminal, igualmente jovens e ilusoriamente belos, um casal de namorados estudantis - com mochilas e casacos pendurados ao ombro, no caso dele, barriga destapada com uma pérola barata no que devia ser um umbigo, no caso dela - roubavam duplamente em boca comum o que vagamente se chama beijo. as zonas gravíticas giravam, às vezes era apenas um jogo de aproximação e distâncias, uma mão subia e outra mão descia. chegavam a desaparecer para ressurgir noutro ponto diferente do corpo em aprendizagem. ela, fixa nesse senso comum da carne e de como aquilo se impunha à sua própria sensualidade, desencadeou em si pequenos flagelos físicos que neles personificava. os dois funcionam como amplexo: frontal e à guarda. alimentam-se de simulacros e de instinto animal, ele lidera se ela se deixa dominar. depois ela é quem assume a liderança se ele se permite a ficar mais indefeso. o funcionamento sexual de dois bichos da seda ante o bater das asas da fase seguinte. porque todos os estádios requerem tempo para se desenvolver, também eles seriam sujeitos ao que o tempo quisesse deles. olhou-os de novo, e não pensando nos territórios da raça e dos credos, facilmente recuperou a concepção de que algumas raízes só podem crescer na base do que não é normal. a espera em avançado delito, quase finita. o som precede a chegada. sobre os carris, umas faíscas de quem ensaia os mesmos gestos todos os dias. a multidão avança, as pernas de toda a gente avançam como ponteiros de horas certas mas inexatas entre si. passa-se tudo muito rápido, entre o parar e o abrir de portas. o sinal emergente de fecho e o vácuo que fica depois da debandada. a mulher, fica sentada. sem querer - repete uma outra voz que parece mecanizada ao fundo, desconhecendo-se a sua origem. quem aparece vem tarde demais. a mulher é apenas uma pose cessante. e ao seu lado esquerdo, o casaco deposto na madeira como o repouso do corpo na verticalidade do osso a prazo que nos sustenta.
quinta-feira, 10 de abril de 2014
Irrupção (ou as pequenas violências quotidianas)
enquanto espera pela chegada do metro, sentada num dos bancos do subsolo surge-lhe a ideia - não o pensamento mas uma pulsão inconsciente e induzida - de que em determinadas situações a demência pode ser coisa de uma doçura ou estranheza extremas. porque há um jovem que em plena plataforma vai repetindo sistematicamente o nome das estações que são anunciadas por uma voz de gravador. faz tudo isso segurando uma pequena câmara e treme. o tom é mais alto ou mais baixo consoante a intensidade da sua intenção. tem um evidente diastema, por onde lhe passam fios de baba espessa em que ela repara. a maioria acha-o doente, e jovem. outros, ignoram-no nos seus casulos de perturbação incómoda. já ela, atenta enquanto espera e fomenta ideias, era capaz de lhe sorrir para a fotografia. acaso quisesse provocar nele um reagente inesperado. desiste. o improviso pode causar danos irreversíveis, é um modo secundário de atingir fins sem meios nenhuns. isso foi o que pensou. com recurso à projecção dual da mente humana. e ainda, a espera. à medida que aumentava, outras imagens iam-lhe povoando o espaço. nas escadas de acesso ao terminal, igualmente jovens e ilusoriamente belos, um casal de namorados estudantis - com mochilas e casacos pendurados ao ombro, no caso dele, barriga destapada com uma pérola barata no que devia ser um umbigo, no caso dela - roubavam duplamente em boca comum o que vagamente se chama beijo. as zonas gravíticas giravam, às vezes era apenas um jogo de aproximação e distâncias, uma mão subia e outra mão descia. chegavam a desaparecer para ressurgir noutro ponto diferente do corpo em aprendizagem. ela, fixa nesse senso comum da carne e de como aquilo se impunha à sua própria sensualidade, desencadeou em si pequenos flagelos físicos que neles personificava. os dois funcionam como amplexo: frontal e à guarda. alimentam-se de simulacros e de instinto animal, ele lidera se ela se deixa dominar. depois ela é quem assume a liderança se ele se permite a ficar mais indefeso. o funcionamento sexual de dois bichos da seda ante o bater das asas da fase seguinte. porque todos os estádios requerem tempo para se desenvolver, também eles seriam sujeitos ao que o tempo quisesse deles. olhou-os de novo, e não pensando nos territórios da raça e dos credos, facilmente recuperou a concepção de que algumas raízes só podem crescer na base do que não é normal. a espera em avançado delito, quase finita. o som precede a chegada. sobre os carris, umas faíscas de quem ensaia os mesmos gestos todos os dias. a multidão avança, as pernas de toda a gente avançam como ponteiros de horas certas mas inexatas entre si. passa-se tudo muito rápido, entre o parar e o abrir de portas. o sinal emergente de fecho e o vácuo que fica depois da debandada. a mulher, fica sentada. sem querer - repete uma outra voz que parece mecanizada ao fundo, desconhecendo-se a sua origem. quem aparece vem tarde demais. a mulher é apenas uma pose cessante. e ao seu lado esquerdo, o casaco deposto na madeira como o repouso do corpo na verticalidade do osso a prazo que nos sustenta.
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