quinta-feira, 29 de julho de 2010

outra vez (ou uma vez mais)



as mãos dele. muito limpas. com que prepara a tinta. respira fundo. e olha para o mundo. ela tem cabelos escuros. fios soltos nas pontas. e um gancho que lhe prende a franja. as pálpebras tremem. as pestanas ficam imóveis. um segundo primeiro. um minuto depois. a atenção dele vai para a atenção que ela merece. por detrás dos óculos ele não lhe revela o seu próprio retrato. ela pergunta-lhe se falta muito. ele deixa cair uma mancha de óleo. e diz-lhe que é só o tempo de secar. ela recorda-se. ele relembra. aquele primeiro beijo. com os lábios a secarem também na face. desse beijo líquido e inteiro. o sal lívido no rosto. e agora pergunta-lhe ela. quase. ele levanta-se. entorna água nas suas mãos. muito limpas. tira os óculos. e pergunta-lhe se está pronta. ela responde que sim. um segundo. sim. um minuto depois. estão os dois no sítio exacto. mas surpreendentemente na tela não se vê nada. porquê. não importa. não se vê nada. mas está tudo bem. porque ambos sabem que está lá tudo. dele e dela também.

domingo, 25 de julho de 2010

intervalo (ou a manhã a tarde e a noite)



ao fundo. ele encostado a um muro. e ela num velho baloiço. há crianças que brincam próximas a eles. sem que nenhum deles se sinta incomodado. sem que nenhum se desvie do que faz. ela elevando-se na atmosfera. dócil como uma nuvem rosa num dia ténue. ele sustido num olhar de descoberta e fixação. como uma gota pesada que cai em círculos. ela não percebe. ele não entende. do mundo à volta sempre mais ambíguo do que os próprias acções. por isso ela balouça no ar. por isso ele olha para ela e detém-se. em liberdade. uma rapariga desliza num escorrega. um rapaz traz uma bola nas mãos. ela abranda. ele assume outra posição. ambos parados.com o tempo a correr entre eles. à velocidade de um sopro. o sol. o pólen e um avião que bate asas na distracção deles. ela levanta-se e prepara-se para ir embora. ele pressente que cada momento que foge traz outro momento consigo. mas não necessariamente assim. ou por esta ordem. ele está mais perto que nunca. ela menos longe do que alguma vez esteve de alguém. cruzam-se à saída. quando. o pó se transforma em areia. deitam-se lado a lado e com eles o céu. de azul para laranja. de roxo para lilás. para um verde invisível. de um claro que ofusca para uma brancura improvável. na cegueira que são estrelas. e com elas o reflexo de um jardim. que mais ninguém vê. que mais ninguém repara. é então que o mar desce pestanejante. e de cabeças voltadas um para o outro. quem. alguém diz. gosto de ti.


quinta-feira, 15 de julho de 2010

fogo e água (ou ao mesmo tempo um pretérito perfeito)



à volta deles um rasto de. os vestígios de. cartas amachucadas num canteiro de rosas numa mala vazia. e pouca luz. apenas as palavras. apenas os sentimentos sobrevivem. apenas a vontade de gritar. a vontade de repetir. apenas. a giz ela desenha no chão oco. sob labaredas de roupas e papéis. ele não ri nas partes cómicas. ela não chora nas mais sérias. nem alto nem baixo. só para não incomodar. só para não quebrar o momento. só para nenhum deles partir. para que sem os estilhaços do vidro possam brindar com o copo cheio. a transbordar. só para não se perderem a meio. apenas. ela na luz. ele na sombra. um som de violino a entrar pelos poros. finíssimos. experimentais. eles agora estão de costas. ela para ninguém. ele também. a sua pele é branca. o vestido é negro. ela veste-o até à cintura. respira com pulmões de fumo. um fumo não tão branco como o da sua pele. e debruça-se. para ele. o mundo está concentrado ali. naquele lugar de mundo. não importa a latitude a que ela se move. não importa a longitude em que ele improvisa. à volta deles uma dança de. os sinais de. rosas embrulhadas em cartas numa mala aberta. como uma caixa de música. em que ela é a bailarina. em que ele é o único espectador. até não restar qualquer nota. até que a sala se esvazie. ela dança. apenas o espanto. apenas a vontade em sigilo. apenas as palavras incandescentes. apenas a emergência de um grito. com afecto. e sentimentos bem vivos. ao centro na claridade. ela dança. ela rodopia. sobre ele. quando é servida a poesia. ele fala-lhe. quando ela deixa de dançar e fica perto dele. ele fala-lhe. a rima pousa-lhe no colo. ele fala-lhe. por tudo e por nada. ela ouve-o. fala comigo. ele fala-lhe. o pano cai de. cansaço. ela ouve-o. e deixa-se ficar em silêncio nos seus braços.

sábado, 10 de julho de 2010

m e l o d i a (ou o nome dos dias)



os dois lugares ficam ocupados de repente. ela senta-se no doze. ele no dez. sussurram um com o outro. murmuram baixo a par e par. enquanto a multidão se acomoda. enquanto o barulho se vai perdendo devagarinho. ela tem uma atenção exigente fora de si. já ele uma emoção que transborda até aos olhos. feliz é a lágrima que cai pelo rosto sem pedir licença. e sem disfarce. o pano sobe. e a coreografia de luzes rompe através das pálpebras. um piano. um acordeão. uma harpa. a dança dos dedos. o lirismo das mãos. às vezes ele desvia o rosto para ela. mas que ela não se apercebe. noutras vezes é ela que o observa de relance. sem que ele se dê conta. cruzam-se na matéria entre o som e a harmonia. mas é sempre melhor quando coincidem um com o outro. quando isso acontece que é quase constante. no antes e no durante. para depois. recomeçar. acrescentando pedras. a solo.


quinta-feira, 8 de julho de 2010

segredo (ou confissão)



entre portas. a noite é um luar perfeito desenhado nas frestas da madeira. ao longe sabe-se que há uma árvore. onde outrora existiu um poço. e onde muito antes disso havia uma fonte. só a árvore permanece. com cerejas nos ramos. e nas folhas o verde primaveril o amarelo outonal e uma brisa morna sacudindo raízes. agarradas ao chão. entre portas. a porta da esquerda. a porta da direita. uma delas abre-se primeiro. sai de lá uma voz. hoje vou agarrar em ti e levar-te comigo num sonho. encostada à ombreira da segunda porta que se abre depois. uma outra voz. mais delicada e mais doce. como o fruto que amadurece na boca. como o gosto que fica no sabor dos lábios. sabes a que nos leva esse sonho. nem onde nem porquê. sem motivo. as duas vozes em diálogo. em uníssono. amanhã e sempre. porque se no início era o verbo. agora o início é não verbal. é uma imagem de olhos a olhar noutros olhos. são dois pares de estrelas cadentes. o fogo é isto. uma certeza a atear tudo em volta. imprevisível. tens a certeza. numa das vozes. tenho. na outra. deslocam-se assim em direcção à árvore. que já foi poço e outrora fonte. a risca cinzenta esbate-se à medida que avançam. as portas ficam abertas. a noite continua perfeita. e o luar permanece. com o som invisível de uma chave pendurada no coração. a embalar os corpos. finalmente pelo mesmo caminho. felizmente. tic tac.


domingo, 4 de julho de 2010

cumplicidade (ou as pétalas de um bem-me-quer)



uma sala às escuras. estão sentados frente a frente. ela de olhos abertos sem ver nada. porque inicialmente a novidade recebe-os com um véu negro. ele vai falando no escuro para que ela o consiga ouvir. não sabem as horas nem quanto tempo passa. há duas mãos. uma desce devagar pelo rosto nos contornos da testa nariz e boca até ao queixo. a outra voltada para cima em que o tacto desenha uma matéria com sentido. consentido. a audição são reacções soltas. o olfacto é uma mistura de sabores invisíveis. o paladar é um brinde no tilintar dos copos. a visão é feita de apalpadelas. procura e encontro. pequenos movimentos em ínfimos gestos. como se o mundo fosse um duradouro eclipse em pano de fundo. não sabem quanto tempo passou. as horas sucedem-se uma às outras. estão agora novamente sentados. sobre um tapete à luz das velas. olham-se nos olhos. contam os passos até ficarem à distância de uma só palavra. ela segreda-lhe ao ouvido o lado lunar de um sonho. e tem os olhos fechados. ele acaricia-lhe secretamente uma parte do corpo em sinal daquilo que é real. e tem na verdade um brilho intenso. diz-lhe que tem a vida que sempre sonhou. com ela. com os braços à volta dele abraçam-se com força. e nesse momento a magia está em sentir tudo. que é tanto.