terça-feira, 20 de abril de 2010

o ofício dos fósforos (ou o tempo todo)




tem setenta anos. talvez mais. Veste um fato cinzento muito desbotado. comido pela traça nos colarinhos e três botões mantidos por um fio. as bainhas envelhecendo com ele. junto a um dos bolsos do casaco, um buraco. ferida cozida a quente, por dentro. entra no café contando histórias. de ironia e mágoa. histórias de tempos antigos que não há já quem seja desse tempo. cicatrizes. porque é a vida que fica para trás com demasiados sonhos pelo caminho – diz ele. numa primeira combustão. o barulho vindo de uma pequena caixa. como se alguém soubesse. um segundo clarão. e uma prega virada do avesso. lá fora na rua, trânsito e respirações. faz-se um silêncio breve e novamente uma fogueira a nascer-lhe entre mãos. O ano passado o coração quis parar que já nem posso embalar o meu neto ao colo. diz com tristeza. senta-se forçosamente. fica curvado com os olhos muito distantes. há um autocarro que passa com gente dentro. uns rapazes que atravessam no sinal verde, a rir alto. uma senhora de bengala arrastando-se do lado de lá do passeio. um curto silêncio. é a vida com demasiados sonhos que ficam para trás. que partem. há-de alguém pensar. e no fundo um enorme vazio sobrando-lhe no corpo. como se alguém pensasse. O que lá vai, lá vai – suspira. levanta-se de repente. penteia o cabelo ralo, branco. observando para fora de si. olha para o céu e lê-se nos lábios um rumor. guarda o pente na serenidade de quem nada possui. talvez a inocência seja o doloroso abandono. paciência. é vida. não é assim? o último dos fogos em vias de extinção ou a trémula sombra que se vai apagando . ponto. mas o que será pior: a dor da velhice ou ter que morrer? – pergunta. uma breve pausa. ninguém sabe. não é assim? sem dúvidas nem certezas. tem setenta anos. ou mais. ainda a sonhar. como que a desaprender de contar o passado perdido e a assobiar ao futuro que resta.

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