quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Pedro e Inês - (Ária a solo)




/ Procuro a verdade, pela qual nenhum homem jamais foi ferido. /

Marco Aurélio, Meditações



Queria saber como te chamas, diz-me o teu nome. Diz-me como te costumam chamar, por que letra começa o teu nome. Uma sílaba, apenas. Um tom ou uma entoação, só.


Eu também tenho um nome, posso dizer-to. Se quiseres. E podia ter muitos outros mas foi este que soube que era o meu quando percebi que falavam para mim, da primeira vez e última quando aguardava no corredor não sei o quê. Queres que to diga? Ou. O teu.


Sabes? É estranho não conseguir falar contigo, não chegar até ti. Não saber como me dirigir até não saber, e ponto. Não sei e tu não dizes. Eu não sei. Tu não sabes. Nós não sabemos. Nem eu nem tu. Nem o teu, eu. Nem o meu, tu. Não sabemos. De nós. Ponto.


Somos como dois desconhecidos no mesmo lugar, à mesma hora e ainda assim, não nos olhamos sequer nos olhos, não trocamos uma simples formalidade, um gesto banal, nada. Ficamos presos, como quem diz, ao espaço que demora entre dois ponteiros.


Tic tac. Na minha cabeça este som estilizado com sabor amargo. Esta espera sem esperança nenhuma. Oxalá a crença e a fé fossem apenas uma. Unidas nessa duração elástica que se alonga entre aquilo que aparece e tudo o que vai embora. Tic tac.


Penso, ou chego a pensar, o que será quando um de nós se for embora. O que fica depois desse momento. O que deixará de estar. Se eu for primeiro, contrariado e teimoso. Se tu fugires demasiado depressa. Se eu ou tu. Se nos determos.


Já imaginei, até, o que sentirás quando aquele corpo estiver amarrado a uma estátua sem se mexer. O que eu hei-de sentir na hora de agora que não há volta a dar. Sem atrasos nem distracções. Feliz acaso: recuar um instante e sorrir. Rir. E ficar assim. Para depois.


E ainda a sonhar com todas as forças possíveis o dia que nunca acabe e a noite que jamais termine. Porque é a única forma de o tempo desaparecer. Toda a noção e dimensão dEle. Para deixar de ter esta conformidade e aqui não haver mais ninguém.


Mas tudo o que conheço de ti é este intervalo que dura desde a folha branca para além das grades da minha sentença. Da tua invisibilidade. O ferro. A angústia glacial do intocável, do toque roubado ao fogo. O vento apertando algemas num adeus errante.


Acho que não percebes o que te estou a falar. A razão pela qual estou condenado. A verdade exposta ao fracasso de não me responderes. Já não importa, tento não me lembrar mais. Das minhas mãos cobertas de crime e de remorsos. Púrpuras, de cor.


O fim da inocência. Talvez seja culpado. Talvez tenha sido eu a originar o avesso de todas as coisas. Ela chamava-se I n ê s. Era jovem e era bonita. E com ela, estendida e inerte, um mundo distorcido e amarrotado. De cetim, manchado. O fim do mundo.


Como o mundo pode terminar tão inesperadamente. Basta que algo aconteça que atraiçoe tudo o quanto devore em menos de nada e, force consigo a destruição e a injustiça a crueldade e o medo, sim, o medo da culpa. Sem absolvições. Perdão.


O que quero dizer? Tento não me lembrar mais. Ao menos forjasse a memória. A meio do sono incessante quando uma borboleta láctea saísse ao entardecer e te pousasse nos ombros. Levando as sombras dos corvos.


Cem flores. Nem rosas nem jasmim.



Dois pontos:


chamo-me P e d r o, e tu?

1 comentário:

little*thing disse...

Hoje sei como se exprime a vida da poesia
com a sinceridade das emoções linguísticas
com que o mundo devasta e enche as nossas vidas

Aprendi a clareza das imagens fictícias
recolhidas na luz do corpo nu e vivo
entre os golpes orais errante desferidos

Gastão Cruz, in "Campânula"