terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Ad nauseum ad infinitum




"A vida de uma mulher é a história dos seus afectos."
Washington Irving (1783-1859)





Um quarto para a uma. Um quarto para uma. Fala que diz das horas ou sobre algo mais? Uma e um quarto. Uma num quarto. Tanto que pode ser sobre uma vulgar multiplicação hipotética de um momento que se repete, se repete e torna a acontecer. Um quarto para as quatro. Quatro e um quarto – sendo somente ela.


Uma. E um quarto, pequeno e grande. Na imensidão que conhece de cor, mesmo que a pele falhe mesmo que os olhos ceguem mesmo que a consciência doa mesmo que tudo falhe. Um quarto exíguo e desmedido, diferente: ao meio a cama feita. Os lençóis lavados em alinhamento impecável com as almofadas, um candeeiro que imita a burguesia numa banal chinesice. Um tapete persa que nem um gato. Malhado de pegadas negras a contraste com a brancura das paredes. Tão ásperas, rugas transversais ao medo no lugar cândido de onde ficaria bem uma natureza morta. Quatro paredes, e um quarto.

Uma num quarto. Ela vai e vem. Vaivém, austera para com o exílio no lugar do crime. Umas vezes, ela, parece que se vai num ápice. E que já não voltará. Porque aquela cama não é para regressos. Pelo contrário – aquele é o quarto de todos e só dela. Adeus. A cama de todos, a deus. Todos aqueles que a acompanham ao abismo e que vão com ela até à porta pisando o tapete de pegadas manchado. Aqueles todos que, na volta, não dormem. Adeus. E é quando ela volta. Precisamente quando não queria regressar. Para as suas paredes brancas, ocas em queda rasa. Para limpar e arrumar as cinzas, para mudar os lençóis e alinhá-los em relação às almofadas. Para a companhia do gato persa, macio, que não existe. Enfim.

Um quarto para uma – somente ela. Um quarto para a uma. Serão horas à fala entre si, sobre tudo? Sobretudo. O candeeiro burguês ou chinês partido na base e com isso inchando as pegadas do gato negro pelas paredes desertas, apenas. O quarto como um tronco cortado ao meio, tão corrupto tão sujo. Mas ainda assim, sereno. De pé.

Um quarto para as quatro. No vaivém habitual, ela carregando às costas a esperança de que se regressasse ao ontem e talvez amanhã pudesse ser mais feliz ou ter feito feliz mais alguém. Num momento hipotético e repetido exaustivamente. A multiplicar todos os trunfos por uma questão de sorte: o ás de copas, redondo e vermelho, esquecido algures entre o descontentamento e duas notas de conforto.

Sem fim à vista, olha da janela o mundo exterior. As casas e os passeios, a respiração da cidade e há um sonho de criança que lhe acena. Parece que parte nesse embalo frágil e negligente, para não voltar. Mas a campainha soa como um grito. Um gemido. E agora? E agora, as veias explodem perante o segredo que guarda. Desse sonho, somente ela. E agora? Geme, grita – quer que tudo falhe. A pele rígida das pedras da calçada, os olhos cegos para mais não ver. A consciência em colapso posterior ao crime. O lugar em que lhe dói. Mesmo que tudo falhe. E agora? Agora. A campainha pára. Ainda assim, ecos de um grito. Repercussões de um gemido, um esgar de esperança. Enfim. E agora?


Quatro e um quarto. Arrumado e limpo. Pequeno e grande. Somente ela – omitindo o tempo que tanto lhe falta, até à próxima vez. Porque às vezes, acontece. Ou então, nunca, nunca mais.


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