sábado, 24 de janeiro de 2009

Se sonhar pudesse



Se sonhar pudesse
quereria descrever esse sonho como algo de ascendentemente profundo,
sem que os seus olhos castanhos fossem negros sem que coubesse
ao mesmo tempo no mundo vivido e tudo o que imaginava.

Se sonhar pudesse
desdobraria todas as suas dúvidas em francas afirmações de sentido,
único sentimento capaz de lhe devolver um riso longo e prolongado - até
capaz de se tornar num eco saudoso por mais que os dias lhe fugissem entre mãos.

Se sonhar pudesse
e não escreveria senão de amor, somente esse fracasso deixado ao acaso
em tinta diluída pelo amargo sal que provou, pelo doce sussurrar de murmúrios
que não mais escutaria dessa mesma forma. Se sonhar pudesse

deixando para trás as despedidas e as palavras abandonadas.

Mas não pode. Porque não sabe.

O medo de fechar os olhos e não ver para lá da escuridão que magoado sofreria ausente da luz que o ofende e apavora. Que o cega perante as evidências.

O corpo como que esquecido ao frio durante a madrugada em que todos os desejos remontam um circo de vaidades insaciáveis. Embora a leveza seja um estado de espírito

a música ensurdece-lhe a audição do mundo que gira em círculos, órbitas que permanecem pelas horas vãs – nessas vagas em que o pesadelo mais tenebroso assume um rosto e uma imagem deveras ténue e angelical.

A secura que lhe deforma os dedos e os gestos, a garganta húmida de gritos guardados em constante desassossego. Ainda – a paz que o agita aquando se afasta e recomeça a andar. Passo a passo, aproximando-se cada vez mais longe de si.

Se sonhar pudesse
se tivesse com quem o fazer. Por quem o merecer.

Mas não consegue. Mata e mói esse devaneio numa só emboscada de desgosto.

Ele vagueia – já o tenho visto de longe – às voltas pelo seu pensar desmedido e regressando sempre a essa casa escondida no meio de gente perdida. Tem por dentro um lenço branco que encobre todas as feridas do seu coração. Ele que sangra moderadamente quando todos dormem. E as cicatrizes são desilusões mascaradas pela sua alegria. Ele que faz e refaz o caminho na sombra da solidão.


Chama-se.

(Apaga a nostalgia sem que ninguém saiba e continua a viver. Ao ritmo do alheio e sobre o chão)

Se sonhar pudesse
e o que seria da sua história sem um final digno e feliz?

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