a memória bateu-lhe à porta com uma mala cheia de recordações. e pediu-lhe se podia passar aquela noite, ali, na sua companhia. tinha de parar um pouco antes de continuar, explicou. o pedido foi aceite, mais ou menos de forma pacífica. entra, fica como se já aqui tivesses estado – disse. a porta voltou ao seu lugar, o ambiente voltou ao que estava. tenho ideia de cá ter vindo, há muito tempo. e tu? surpreendentemente, a visita assumia o papel de protagonista, na figura do anfitrião transformada em figurante. o que trazes nessa mala? por momentos, o ar fez-se solúvel. as palavras fizeram-se novelos e a resposta saiu-lhe num travo de retórica delicada. lembro-me de tudo. do lenço axadrezado que lhe cobria o pescoço, da camisola de lã cinzenta com as mangas que sobressaiam debaixo do casaco preto. da expressão de curiosidade que havia no fundo de dentro daqueles olhos convidativos. das suas mãos cuidadosas, da grandeza das poucas perguntas que fazia quando se conheceram. ou da franja que lhe deslizava numa das margens da face, oculto o olhar directo e furtivo, num misto de atrevimento e discrição. suspirou e calou-se, sem saber se tinha acertado correctamente no que acabara de dizer. recuou um pouco atrás mas sem poder pensar muito nisso, já que a memória desferira o derradeiro golpe. falta-te uma coisa, lembras-te? foi então que o tanto que tinha para dizer, se contraiu. foram devolvidos os pés ao chão, e num momento, a comparação mostrou-se inevitável: a mesma curva dos baloiços em que te vi brincar é quase a mesma, de muito parecida, com que me revelas na tua alegria. nisto, tudo se acomodou. esboçou uma reacção feliz, das que se cumprem com lugares comuns. e descansou.
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