eles vêm pela rua num semi-abraço, na metade de um que ao outro se une. trazem uma expressão muda nas suas feições e uma bengala para dois. uns dias é ele, outros dias é ela. é a vez de um deles. amparam-se com a fraternidade de se terem por companhia onde quer que vão. e mais a bengala que os ajuda; não por serem velhos mas porque são cegos. porque não podem ver as coisas mundanas que tantos de nós tornamos invisíveis: os sinais, as imagens, o que está mesmo ali ou mais adiante. o que não está nem esteve ou que sempre permaneceu, o que podia vir a estar. eles não se vêem, mas reconhecem-se. para atravessar, por exemplo, dum passeio para o passeio do lado oposto ficam muito sérios. muito juntos. fazem-no devagar e em alerta. e chegam a ouvir os próprios passos só por uma sensação legítima de certeza. depois deixam a seriedade breve, e alegram-se mutuamente numa linguagem que poucos podem entender. dir-se-á que parece que brincam às escondidas com o resto do mundo. nessa cumplicidade digna e talvez plena de quem torna todos os demais sentidos mais inequívocos do que aquele que lhes fora negado. continuam a andar e tocam-se, mesmo que desconhecendo a imagem onde o corpo tem o seu final. mesmo ignorando os limites que na grande maioria, se mantém:
abraçam-se na ausência do que não podem ver. e amam-se, mesmo assim, sem a inútil esperança de tornar tudo mais claro.
desaparecem numa esquina, na ironia de mais ninguém lhes pôr a vista em cima. sem como nem porquê, a história deles é a história de tanta gente. ligeiramente diferente. mas só porque hão-de envelhecer com a ideia de que são perfeitos na medida dos dedos. porque hão-de continuar a brincar, pelos vistos, por detrás de nuvens muito densas – ou de uma cortina de fumo muito espessa – ensinando a sombra ao medo, ou o amor sem medo nenhum.
[virados um para o outro] a tua cara não me é estranha [porque não podia ser].
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