o que aconteceria ao trapezista se não tivesse rede? foi com esta questão que se deparou, num qualquer lugar de um tempo qualquer, enquanto o contorno dos olhos transparecia algumas imperfeições ou o brilho dos lábios a chama descuidada da sua boca fechada. arranjara-se como algo divino, pintara-se para encobrir os fantasmas postiços que teimavam em reaparecer. porque naquela data ressurgiam todo o tipo de convidados indesejados e indesejáveis, porque naquela data as marcas ainda eram demasiado visíveis. para se confundir, para ser confundida. o que aconteceria ao trapezista se não tivesse rede? sentiria a queda? a rede desfazer-se-ia com o impacto? o que aconteceria? de pé, mirada por um espelho sujo, disfarçando que aquele não era o momento de mandar o barro à parede e ver no que dá. pegou, isso sim, no lápis adequado. desfez as olheiras e imaginou-se de longe com uma tiara a enfeitar-lhe a beleza dos cabelos, num foco de incêndio ao que é maravilhoso. de longe, a terra não lhe engolia os passos, e mais longe ainda algo lhe devolvia a liberdade e a leveza que só quem regressa à essência do que é, pode ter em relação aos que se abandonam. quis recomeçar do início. fulminante, subiu mutuamente os braços, o direito e o esquerdo em uníssono, as mãos num coro lento mas de uma regularidade exemplar. e na posição em que estava, dançou ao rodar sobre si mesma. com o consentimento do corpo, voou. sem roupas, e essencialmente, sem precisar da capa que não lhe servia já para coisa nenhuma.
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