a memória bateu-lhe à porta com uma mala cheia de recordações. e pediu-lhe se podia passar aquela noite, ali, na sua companhia. tinha de parar um pouco antes de continuar, explicou. o pedido foi aceite, mais ou menos de forma pacífica. entra, fica como se já aqui tivesses estado – disse. a porta voltou ao seu lugar, o ambiente voltou ao que estava. tenho ideia de cá ter vindo, há muito tempo. e tu? surpreendentemente, a visita assumia o papel de protagonista, na figura do anfitrião transformada em figurante. o que trazes nessa mala? por momentos, o ar fez-se solúvel. as palavras fizeram-se novelos e a resposta saiu-lhe num travo de retórica delicada. lembro-me de tudo. do lenço axadrezado que lhe cobria o pescoço, da camisola de lã cinzenta com as mangas que sobressaiam debaixo do casaco preto. da expressão de curiosidade que havia no fundo de dentro daqueles olhos convidativos. das suas mãos cuidadosas, da grandeza das poucas perguntas que fazia quando se conheceram. ou da franja que lhe deslizava numa das margens da face, oculto o olhar directo e furtivo, num misto de atrevimento e discrição. suspirou e calou-se, sem saber se tinha acertado correctamente no que acabara de dizer. recuou um pouco atrás mas sem poder pensar muito nisso, já que a memória desferira o derradeiro golpe. falta-te uma coisa, lembras-te? foi então que o tanto que tinha para dizer, se contraiu. foram devolvidos os pés ao chão, e num momento, a comparação mostrou-se inevitável: a mesma curva dos baloiços em que te vi brincar é quase a mesma, de muito parecida, com que me revelas na tua alegria. nisto, tudo se acomodou. esboçou uma reacção feliz, das que se cumprem com lugares comuns. e descansou.
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012
sábado, 18 de fevereiro de 2012
claro escuro (ou o luar)
sexta feira, em nocturna passagem. amanheceu escureceu e anoiteceu. fenómeno casual como o tempo que avança. algures há uma casa, alguém se recolhe, encolhe-se sob o calor da cama em que dormiu o dia inteiro. e escolhe um filme que adie a vontade de se fechar na sua concha acolchoada, para até depois. entretanto, num outro ponto incidental, há um coração onde é sempre madrugada. por maior, um único pormenor: na vida que se habituou a viver é a transparência que lhe ata e desata todos os nós, sem surpresas sem sustos sem incógnitas. a semelhança está, ocasionalmente, nas contracções que demora até se expandir, até depois. entre uma coisa e outra, o tempo avançou de um corpo ao outro sem tocar nenhum deles. por momentos, os olhos colidem no mesmo movimento. mas só isso, algures entre o silêncio e a vigília. eles estão exactamente posicionados sobre o lado esquerdo do sonho, sonho esse que suporta tudo aquilo que importa. algures, esse coração sabe de alguém e alguém sente esse coração. por fim, são os gestos que repousam, deitados. até para depois, sábado. ou até mesmo, até para depois disso.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012
o mergulho (ou o episódio heróico que faltava)
o que aconteceria ao trapezista se não tivesse rede? foi com esta questão que se deparou, num qualquer lugar de um tempo qualquer, enquanto o contorno dos olhos transparecia algumas imperfeições ou o brilho dos lábios a chama descuidada da sua boca fechada. arranjara-se como algo divino, pintara-se para encobrir os fantasmas postiços que teimavam em reaparecer. porque naquela data ressurgiam todo o tipo de convidados indesejados e indesejáveis, porque naquela data as marcas ainda eram demasiado visíveis. para se confundir, para ser confundida. o que aconteceria ao trapezista se não tivesse rede? sentiria a queda? a rede desfazer-se-ia com o impacto? o que aconteceria? de pé, mirada por um espelho sujo, disfarçando que aquele não era o momento de mandar o barro à parede e ver no que dá. pegou, isso sim, no lápis adequado. desfez as olheiras e imaginou-se de longe com uma tiara a enfeitar-lhe a beleza dos cabelos, num foco de incêndio ao que é maravilhoso. de longe, a terra não lhe engolia os passos, e mais longe ainda algo lhe devolvia a liberdade e a leveza que só quem regressa à essência do que é, pode ter em relação aos que se abandonam. quis recomeçar do início. fulminante, subiu mutuamente os braços, o direito e o esquerdo em uníssono, as mãos num coro lento mas de uma regularidade exemplar. e na posição em que estava, dançou ao rodar sobre si mesma. com o consentimento do corpo, voou. sem roupas, e essencialmente, sem precisar da capa que não lhe servia já para coisa nenhuma.
sábado, 11 de fevereiro de 2012
dos amantes (ou a efeméride em estado febril)
o amor está para a natureza humana como os planetas estão para o sistema solar. de Júpiter a Saturno passando por Mercúrio e terminando em Plutão. e todos os dias se continuam a descobrir novos planetas da mesma forma que todos os dias se continuam a desvendar novas formas de perpetuar o amor, essa arte de enamorar o gémeo de si mesmo. no caso deles, em absoluto planeta Terra, o desenlace era uma fórmula um pouco mais complicada. ele queria ser sublime sem metafísica, ela desejava ser a vanguarda de mulher da sua geração. e teimosamente chocavam frontalmente, no mesmo caminho – curiosamente - a velocidades iguais. só para adoçar o desfecho. ela dizia: pode amar quem quer. ao qual ele respondia - mas ama mais e melhor quem sabe. ela palpitante, ele na expectativa. mas na força que cedia à distância, ele para ela: o meu mundo és tu. ela para ele: hoje, o amanhã volta a fazer sentido. acabando por fechar os olhos para se beijarem, a tremer dos membros superiores com as despedidas que eram ao mesmo tempo a saudação daquilo que é inteiro. por alturas de um dia catorze de um determinado mês, ele vestiu-se a rigor de fisga apontada a ela. e ela apresentou-se com o coração desmascarado e pronta a ser conquistada. pelo menos por uma vez, estavam certos de que atirariam a pedra ao ar só depois de perguntar quem lá vem. cruzaram-se sabidos e achados, chocaram ao de leve no verbo querer e, a julgar pelo modo como se entregaram, neste mundo ou num outro por eles inventado - a maior descoberta está em ser tudo e todas as coisas, por amor. assim, naturalmente que a pedra se transformou no melhor e no mais bonito que tinham para dar um ao outro. o amor, no caso deles, viveu pela vida fora. [de tão imenso, como o universo].
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012
o drama de tchaikovski (ou o bailado da alma)
O instante conta-se da seguinte maneira: os animais grunham, bramam e chiam. rosnam e miam e à semelhança do que sucede com os humanos existem barulhos que não se entendem. que não esclarecem. todavia, a mistura do burburinho com a algazarra adensa ainda o que o silêncio tem de ensurdecedor. após este instante, contado assim, o pano caía e o movimento ia ficando reduzido. sabe-se que foi já a altas horas que tomou como nítida a diminuída verdade - construída que fora com grandes mentiras - e fez de conta. pelo contrário, obedeceu como pôde à ferocidade e acalmou cada esforço. houve ainda um instante, no canto do cisne, em que lhe chamou de cisne negro. onde bateram asas negras no cenário branco, esborratado. e no finalmente da coreografia, o antes seria esquecido durante todos os erros, só para depois se perdoar.
tiro ao alvo (ou a velocidade do disparo)
numa noite destas deu por si, às voltas, a remexer em caixinhas e gavetas em busca da sua antiga máquina fotográfica. encontrou papéis amarrotados, postais vincados nos cantos e até cartões das mais variadas formas e feitios com os mais variados nomes dos mais variados assuntos. da máquina, nada. um rolo apenas, por revelar
- encontras com facilidade o que procurares com fervorosa vontade, disseram-lhe à uns anos atrás
quando nesse tempo andava com a máquina sempre pronta a captar todo o tipo de acontecimentos exteriores que lhe apareciam com tal nudez, e que não desperdiçava fosse pelo que fosse ou estivesse como estivesse. tinha essa paixão, que coincidiu com o tempo em que também se apaixonou. era mais jovem e um dia, aconteceu. apaixonou-se e deixou-se apaixonar. recebeu a tal máquina num aniversário ou numa data especial, nesse tempo em que se sentia numa dupla realização – por algo e por alguém. ansiava os telefonemas, hesitava no que a voz imitava de silêncios reprimidos, reagia aos momentos como quem vibra de estímulo e magia, e guardava a vida como quem vive o que só cresce por dentro.
um dia, a lente partiu-se. a máquina deixou de funcionar como dantes, as fotografias saíam desfocadas e a paixão fugiu-lhe algures entre o sorriso de um bebé ao colo da mãe e uma árvore com o tronco rasgado pela madeira fendida. O que se passou a seguir? a idade avançou, o cabelo cresceu novamente com outras raízes, ocupava os dias com rotinas ocasionais e prosseguiu – como as pessoas normais – os estudos, as idas com amigos a festas, os almoços de fim de semana em família e as restantes [mas inerentes] responsabilidades de quem sobreviveu ao que só fica cá dentro.
da máquina, nada. algumas retrospectivas e uns quantos retratos, apenas. na altura não a arranjou, pois que não é possível remediar o que não tem concerto – disseram-lhe, a sabedoria popular, muitos anos antes. mas no futuro
- encontrarás o que aprenderes a procurar devidamente, disse a si uns anos mais tarde
até hoje
quando, sem aviso prévio ou previsão, deu por si às voltas sob qualquer saudade que se fez de Fénix e foi por isso que remexeu em tudo o que era canto em busca da sua antiga máquina fotográfica. mesmo depois de tudo [ou nada]
numa noite destas – em que tornará a acontecer, como se fosse a primeira vez.
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
frente e verso (ou o sentimento escondido na pele)
eles vêm pela rua num semi-abraço, na metade de um que ao outro se une. trazem uma expressão muda nas suas feições e uma bengala para dois. uns dias é ele, outros dias é ela. é a vez de um deles. amparam-se com a fraternidade de se terem por companhia onde quer que vão. e mais a bengala que os ajuda; não por serem velhos mas porque são cegos. porque não podem ver as coisas mundanas que tantos de nós tornamos invisíveis: os sinais, as imagens, o que está mesmo ali ou mais adiante. o que não está nem esteve ou que sempre permaneceu, o que podia vir a estar. eles não se vêem, mas reconhecem-se. para atravessar, por exemplo, dum passeio para o passeio do lado oposto ficam muito sérios. muito juntos. fazem-no devagar e em alerta. e chegam a ouvir os próprios passos só por uma sensação legítima de certeza. depois deixam a seriedade breve, e alegram-se mutuamente numa linguagem que poucos podem entender. dir-se-á que parece que brincam às escondidas com o resto do mundo. nessa cumplicidade digna e talvez plena de quem torna todos os demais sentidos mais inequívocos do que aquele que lhes fora negado. continuam a andar e tocam-se, mesmo que desconhecendo a imagem onde o corpo tem o seu final. mesmo ignorando os limites que na grande maioria, se mantém:
abraçam-se na ausência do que não podem ver. e amam-se, mesmo assim, sem a inútil esperança de tornar tudo mais claro.
desaparecem numa esquina, na ironia de mais ninguém lhes pôr a vista em cima. sem como nem porquê, a história deles é a história de tanta gente. ligeiramente diferente. mas só porque hão-de envelhecer com a ideia de que são perfeitos na medida dos dedos. porque hão-de continuar a brincar, pelos vistos, por detrás de nuvens muito densas – ou de uma cortina de fumo muito espessa – ensinando a sombra ao medo, ou o amor sem medo nenhum.
[virados um para o outro] a tua cara não me é estranha [porque não podia ser].
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012
amanhecer (ou um relato de intimidade)
ameno é o dia, que começa com aqueles tons que parecem saídos da mais vistosa fantasia. de que somos capazes. e de que somos órfãos também. uma brisa suave corre no ar, as aves da manhã passam sucessivamente junto à janela. e à mínima alteração de luz, tudo parece uma explosão de cores intransmissíveis. ameno é o dia. e ela levantou-se cedo como habitualmente. o vento passa-lhe suave e dócil pela janela. e a brisa é doce, naquele momento de entusiasmo. quase lânguido quase ao extremo. ela contempla a cidade com os seus olhos grandes, com o seu rosto franzino. com a sua pele claríssima. com a curiosidade que desenvolveu com os anos. ela é de ferro e de porcelana, em simultâneo. lembrou-se naquela manhã amena, de tantas coisas. riu e chorou, vestiu-se com a primeira coisa que levou às mãos e sentiu uma enorme necessidade de. nada é dispensável. retocou brevemente os lábios e escondeu a sua feição mais triste. perguntam-lhe muitas vezes se é feliz, se está bem. mas o seu segredo é sorrir para os solitários e sorrir mais ainda para os que não lhe são estranhos. quase nunca tem resposta para esse tipo de perguntas. porque também ela amenizou as palavras e o que diz. mas porque nem sempre isso lhe apetece. foi do que se lembrou. e no meio de tantas coisas que lhe vieram à cabeça - nos seus grandes olhos no seu rosto franzino na sua pele de anjo sem deuses – deixou-se levar pela brisa, invadiu-se de generosa bondade e tornou assim mais fascinante o dia ameno, fazendo assim das lembranças um benigno corpo presente.
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
a rapariga (ou a boneca de corda, às vezes)
ela está sentada à beira da cama. a espreitar através das cortinas a natureza das coisas que estão fora dela. porque é fora de si que se concentra no que tem dentro de si mesma. parece confuso, tem alturas que sim e outras que nem tanto. hoje é uma dessas raras alturas, hoje é dos hiatos mais tranquilos de ultimamente. sentou-se à beira da cama e pôs um discos dos antigos para escutar de uma ponta à outra. qual a subtileza disso? ouvir as horas mas longe do tempo.
quem a conhece, diz que é capaz de "olhar para o boneco" de manhã `noite. porque tem recaídas, mas que mesmo assim nunca desiste. para quem a conhece, ela brilha na invenção dos espaços. hoje está em paz, serena. ou pelo menos, a parte dela que deu tréguas à outra
- a que termina quase sempre os dias sob o peso [leve pluma] daquilo que pressente em tocar, do que teima em olhar e do que até secretamente pensa sem contar a ninguém. o cansaço e a fadiga são quase sempre precedidos de uma oração: da coragem, um dia, farás a valentia. e então, viverás sem peso nenhum, sem muros no teu jardim onde morreram girassóis e semeaste árvores de fruto na infância. coragem. já podes, então, ver onde o oceano se enamora do mar. hoje, sentada à beira da cama, encara-se incalculável. minutos antes da música terminar.
ao fundo, aquelas palavras dão-lhe sentido e alento. repete-as uma vez mais, e nisto - já sem música - percebe através das cortinas que o céu está azul. com ondas azuis.
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
o crime reeditado (ou voltar aqui)
[voltei e volvi e
sonhei, achei]
eu já devia ter os olhos fechados quando isto começou
desconheço como ou sob que efeito recordo-me só que
a cabeça desligou-se do mundo, foi nesse instantezinho
do teu eco. enquanto tu me falavas ouvia os sons atentos
do teu eco
que era voz que sobressaía em género de memória acústica
que finalmente regressava mas, extenuada ocasionalmente
ressurgida de um outro tipo de silêncio, diferente, ou
talvez fosse só como calha, se calhar só momentâneo.
isto começou, quando ainda era a noite na tua voz inaudível. a noite no que te queria perguntar e pergunto, mas tu já nocturna não me restituis nenhuma resposta. a noite pareceu-me tão maior de outras que existiram que julgo aguardar sempre pelas manhãs na ânsia de que me digas alguma coisa, somente porque a noite termina sem inversão nem invenção de marcha com o amanhecer seguinte. em diante, havia na minha frente uma sinfonia depois de tanto tempo, a récita que esperou pelo melhor momento e agora, o ideal do binómio lábios e boca, era tudo uma questão da tua voz que falava e fazia eco aproximando-se a passos largos de mim, ágil como
uma língua afiada que é a faca de cortar a respiração:
- não te vejo mas consigo sentir que estás aí. e permaneço imóvel, sem sinais de distracção mas em vez disso, mais disposto e mais exposto. a única luz é a que passa da janela por umas frestas que costumo deixar, respiro à semelhança de um exame médico de auscultação, alivio o aperto da escuridão sobre o domínio da fragilidade e continuo a ouvir-te e tu continuas falar. fazes eco:
conta-me como foi
agora que a noite é imensa e já te tornaste num murmúrio demasiado preciso, agora que me tento mexer na cama devagar encostado às almofadas de costas direitas, agora que quero saber de cor todas as palavras que me diriges, quero decorar cada frase e preencher as superfícies brancas das paredes com relevo e suores frios, com imagens trabalhadas no tempo que existiu e agora, acorda-me desta letargia sem sobressaltos, cativa-me, mantém-me acordado, repete-me:
conta-me como era
posso partir do princípio que isto não é um pesadelo? um delírio da minha mente? respiras para cima de mim, cobres-me de monóxido e de dióxidos, sopras pausadamente ao meu ouvido enquanto te sinto a segredar-me qualquer coisa que nunca antes saberia, se não fosses tu, nunca estaríamos tão perto tão unidos, se não fosses tu [será que algum de nós está igual como antes?]
vou contar como foi
era noite. lá fora uma agitação de árvores e ramos que se partiam na violência dos abanões, era noite e aterrorizou-me. a surpresa apanha-nos quase sempre sem preparação, é inerente ao mistério, aquele barulho separado numa meia distância de vidro e pensamentos isolados, não estava à espera. estás a seguir-me? agarra-me o raciocínio e vem comigo. [não há demora, sigo].
pausa, voltas um pouco atrás para seguir em frente. a noite é para dormir, dizes-me. e os teus olhos dizem, e a tua pulsação diz, e o teu corpo não contradiz. e os teus reflexos dizem, a tua hesitação diz, e o teu pulso latejante torna a dizer que a noite é para dormir, não estava à espera,
porque era noite,
e o imprevisto já lá estava, e mostrou a sua face
caiu a máscara, revelou-se - vês? vê com os teus
próprios olhos, isto nada tem de loucura, vês-me?
eu tento ver-te, mas é no escuro que te sinto aqui
fecho os olhos pestanejantes, sem receio de as imagens me trocarem as voltas ou se são as voltas que me baralham as imagens, daqui não saio enquanto não disseres o que tens a dizer, a tua coragem torna a minha bravura numa personagem secundária de filme assombroso na cidade que tranquilamente repousa fora de nós, o relevo de tudo isto reside nessa voz de ti que possuis:
estás tão calado
não dizes nada?
não te vou dizer nada, por enquanto
é a tua autoridade verbal que conta,
- tu sabes sempre o que esperar de mim, não é assim?
a verdade verdadinha é que têm havido tantas noites
[juro]
crescidas e adultas, lembrando-me o dia em que me deitei no chão enquanto me contavas coisas sobre ti com tanto tempo e com tanto pó em cima. e um sopro tão delicado bastou para te olhar
pequenas e dóceis, como aquela em que desenhei linhas de ar com a caneta que me emprestaste, com tinta que seria permanente. tu: toma atenção, não vale espreitar estás a ir bem, muito bem
noites inacabadas, de páginas de livros que não terminei já sem forças ou unhas que roí com a persistência de um desconforto arrancado com os dentes, embalo habitual num sono flagrante
noites moles e macias, a minha cabeça encostada aos braços do sofá com os teus braços que me abraçam, sobre a tua vigilância e protecção o sentimento de segurança como se fosse uma vertigem mas da qual nunca se cai [e se caí eras tu para me segurar] porque ainda me vais deitar
geométricas e abstractas, que são poucas e evito, tu sabes. aquelas que só têm formas muito estranhas umas das outras, que fazem-me pensar e não quero [quantos lados tenho eu para ti?]
as noites em que pouco descanso ou não descanso mesmo, em que estou presa por linhas perpendiculares e luzes no interior de áreas vazias, e se por acaso há uma interrogação desfaço-a sem mais nem menos: a consciência só é útil se estiver livre de suspeita e num estado de leveza
de repente,
penso que me estou a esquecer de alguma coisa, desculpa
- estou a fazer um esforço para me lembrar, vou ser capaz
[ajuda-me] ainda saberei das noites em que precisei de ti?
...
as paredes estavam cheias de recados, coisas que tinham ficado para trás quando corremos demasiado, um medo qualquer estúpido que não compreendia e uma saliva seca no canto mais seco da tua voz, num tom abaixo, havia a minha necessidade de ir até o mais além possível, de te procurar onde tu me havias encontrado
foi assim? diz-me se foi assim
esse silêncio começa-me a incomodar
não me consigo lembrar de mais nada
agora, claro e escuro misturam-se é de
noite, desculpa.
está muito frio e estou tão cansada
e imprevisível]
sempre que te quiser posso ficar?
nunca tiveste de partir [assim era]
mas assim foi?
- ele acordou a transpirar em bica
acendeu a luz de fogo: o candeeiro
e olhou para onde dormia
- como criança - o coração.
uma língua afiada que é a faca de cortar a respiração:
- não te vejo mas consigo sentir que estás aí. e permaneço imóvel, sem sinais de distracção mas em vez disso, mais disposto e mais exposto. a única luz é a que passa da janela por umas frestas que costumo deixar, respiro à semelhança de um exame médico de auscultação, alivio o aperto da escuridão sobre o domínio da fragilidade e continuo a ouvir-te e tu continuas falar. fazes eco:
conta-me como foi
agora que a noite é imensa e já te tornaste num murmúrio demasiado preciso, agora que me tento mexer na cama devagar encostado às almofadas de costas direitas, agora que quero saber de cor todas as palavras que me diriges, quero decorar cada frase e preencher as superfícies brancas das paredes com relevo e suores frios, com imagens trabalhadas no tempo que existiu e agora, acorda-me desta letargia sem sobressaltos, cativa-me, mantém-me acordado, repete-me:
conta-me como era
posso partir do princípio que isto não é um pesadelo? um delírio da minha mente? respiras para cima de mim, cobres-me de monóxido e de dióxidos, sopras pausadamente ao meu ouvido enquanto te sinto a segredar-me qualquer coisa que nunca antes saberia, se não fosses tu, nunca estaríamos tão perto tão unidos, se não fosses tu [será que algum de nós está igual como antes?]
vou contar como foi
era noite. lá fora uma agitação de árvores e ramos que se partiam na violência dos abanões, era noite e aterrorizou-me. a surpresa apanha-nos quase sempre sem preparação, é inerente ao mistério, aquele barulho separado numa meia distância de vidro e pensamentos isolados, não estava à espera. estás a seguir-me? agarra-me o raciocínio e vem comigo. [não há demora, sigo].
pausa, voltas um pouco atrás para seguir em frente. a noite é para dormir, dizes-me. e os teus olhos dizem, e a tua pulsação diz, e o teu corpo não contradiz. e os teus reflexos dizem, a tua hesitação diz, e o teu pulso latejante torna a dizer que a noite é para dormir, não estava à espera,
porque era noite,
e o imprevisto já lá estava, e mostrou a sua face
caiu a máscara, revelou-se - vês? vê com os teus
próprios olhos, isto nada tem de loucura, vês-me?
eu tento ver-te, mas é no escuro que te sinto aqui
fecho os olhos pestanejantes, sem receio de as imagens me trocarem as voltas ou se são as voltas que me baralham as imagens, daqui não saio enquanto não disseres o que tens a dizer, a tua coragem torna a minha bravura numa personagem secundária de filme assombroso na cidade que tranquilamente repousa fora de nós, o relevo de tudo isto reside nessa voz de ti que possuis:
estás tão calado
não dizes nada?
não te vou dizer nada, por enquanto
é a tua autoridade verbal que conta,
- tu sabes sempre o que esperar de mim, não é assim?
a verdade verdadinha é que têm havido tantas noites
[juro]
crescidas e adultas, lembrando-me o dia em que me deitei no chão enquanto me contavas coisas sobre ti com tanto tempo e com tanto pó em cima. e um sopro tão delicado bastou para te olhar
pequenas e dóceis, como aquela em que desenhei linhas de ar com a caneta que me emprestaste, com tinta que seria permanente. tu: toma atenção, não vale espreitar estás a ir bem, muito bem
noites inacabadas, de páginas de livros que não terminei já sem forças ou unhas que roí com a persistência de um desconforto arrancado com os dentes, embalo habitual num sono flagrante
noites moles e macias, a minha cabeça encostada aos braços do sofá com os teus braços que me abraçam, sobre a tua vigilância e protecção o sentimento de segurança como se fosse uma vertigem mas da qual nunca se cai [e se caí eras tu para me segurar] porque ainda me vais deitar
geométricas e abstractas, que são poucas e evito, tu sabes. aquelas que só têm formas muito estranhas umas das outras, que fazem-me pensar e não quero [quantos lados tenho eu para ti?]
as noites em que pouco descanso ou não descanso mesmo, em que estou presa por linhas perpendiculares e luzes no interior de áreas vazias, e se por acaso há uma interrogação desfaço-a sem mais nem menos: a consciência só é útil se estiver livre de suspeita e num estado de leveza
de repente,
penso que me estou a esquecer de alguma coisa, desculpa
- estou a fazer um esforço para me lembrar, vou ser capaz
[ajuda-me] ainda saberei das noites em que precisei de ti?
...
as paredes estavam cheias de recados, coisas que tinham ficado para trás quando corremos demasiado, um medo qualquer estúpido que não compreendia e uma saliva seca no canto mais seco da tua voz, num tom abaixo, havia a minha necessidade de ir até o mais além possível, de te procurar onde tu me havias encontrado
foi assim? diz-me se foi assim
esse silêncio começa-me a incomodar
não me consigo lembrar de mais nada
agora, claro e escuro misturam-se é de
noite, desculpa.
está muito frio e estou tão cansada
e imprevisível]
sempre que te quiser posso ficar?
nunca tiveste de partir [assim era]
mas assim foi?
- ele acordou a transpirar em bica
acendeu a luz de fogo: o candeeiro
e olhou para onde dormia
- como criança - o coração.
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