naquele
instante, começara a chover. primeiro, umas gotas enviesadas e estreitas
lentamente. depois, mais intensas como se fossem neve a desfazer-se de
precipitação. muito lívidas, incoloridas. há no ar uma camada de pó que se
levanta, e ela seguindo-lhe o movimento em extensão e sempre a correr no limite
que o tempo impõe, abre um guarda-chuva. cuidadosa, atravessa para o lado de lá
do sítio em que estava e é íngreme, agora, a rua que tem de subir. muda de
passeio ao longe, na terceira passadeira, e desaparece. do lugar onde alguém a
observa – e sabe quem ela é – uma voz decifra a matéria de que são feitos os
romantismos nos dias de hoje. à antiga e fora de moda. menina que se custa, à vez, quando todos os
outros riem por uma irracionalidade qualquer. menina que se alegra em si mesma
e é feliz, mesmo quando os outros todos não compreendem nem como nem porquê.
essa mesma menina, que desaba convenções pela curiosidade inata que alimenta. consigo.
por tudo e em tudo. menina que derruba preconceitos a preceito de palavras tão
suas, feitas por conta peso e medida. menina que sabe ser crescida na extensão
da pequenina que quando não conhece, arrisca e quer. que não se contenta nem se
satisfaz com mediocridades, que afirma «o amor não é banal» com a mesma naturalidade
com que atenta o mundo através de um olhar mais denso e sem pele. mesmo sem
asas, tendo-as. mesmo debaixo da pele, sobrevoando o tacto e o contacto. aquele
que a observa nos olhares que lhe lança – é ele, seguro e crente – visa a
admiração que lhe tem, ali parado na transição para a bonança depois da
tempestade. inesquecido por pontos de fuga e perspectivas luminosas, baixa a
rouquidão de homem como se domasse o tom das palavras de seda que acabara de
dizer. pela menina pequena e grande. pela mulher em que esbarra, e num
instante, baixa e levanta a cabeça. tem uma feição desassombrada e simbólica:
sem hesitações, o soco é uma interrogação quando questionado “se já tinha visto alguém
como tal”. aguardo brevemente o repto quando uma nuvem passa para mostrar que o
mundo é um fio de água sem interregnos. respondo que nunca vi nada assim.
ainda com a vontade de me explicar que não poderia. ele apartou-se e não
reparei. ela fez o mesmo e dei-me conta de que a cidade flutua naquele perfil
que mostra o quanto vale uma aparição. chove timidamente, de novo, e agora quem
fica a ver a noite ganhar asas sou eu. a tarde inaugura a eternidade, o
nocturno. guardo o que disse e não neguei. e ao voltar, no regresso, deixo-me
atingir por uma mão que me guia. um membro que não precisa de ser notado para
se denotar. percebo, enfim, que o amor absoluto tanto existe na extinção da sombra
como no espreguiçar de um fogo felino. o amor puro inviabiliza a negação,
aceita-se e enjeita-se no revés das feridas. madrugada dentro, um poema para uso
doméstico cobre o silêncio, a paz e a aurora cheia de graça. para o que há-de
vir - era uma vez uma menina e um menino. a escreverem sílabas com letras, de
rosas jasmim e de alecrim. ainda a primavera, ainda a chegada e a partida. ainda a casa, sempre.
Sem comentários:
Enviar um comentário