segunda-feira, 14 de maio de 2012

a queda (ou o balanço tomado de braços abertos)




naquele instante, começara a chover. primeiro, umas gotas enviesadas e estreitas lentamente. depois, mais intensas como se fossem neve a desfazer-se de precipitação. muito lívidas, incoloridas. há no ar uma camada de pó que se levanta, e ela seguindo-lhe o movimento em extensão e sempre a correr no limite que o tempo impõe, abre um guarda-chuva. cuidadosa, atravessa para o lado de lá do sítio em que estava e é íngreme, agora, a rua que tem de subir. muda de passeio ao longe, na terceira passadeira, e desaparece. do lugar onde alguém a observa – e sabe quem ela é – uma voz decifra a matéria de que são feitos os romantismos nos dias de hoje. à antiga e fora de moda.  menina que se custa, à vez, quando todos os outros riem por uma irracionalidade qualquer. menina que se alegra em si mesma e é feliz, mesmo quando os outros todos não compreendem nem como nem porquê. essa mesma menina, que desaba convenções pela curiosidade inata que alimenta. consigo. por tudo e em tudo. menina que derruba preconceitos a preceito de palavras tão suas, feitas por conta peso e medida. menina que sabe ser crescida na extensão da pequenina que quando não conhece, arrisca e quer. que não se contenta nem se satisfaz com mediocridades, que afirma «o amor não é banal» com a mesma naturalidade com que atenta o mundo através de um olhar mais denso e sem pele. mesmo sem asas, tendo-as. mesmo debaixo da pele, sobrevoando o tacto e o contacto. aquele que a observa nos olhares que lhe lança – é ele, seguro e crente – visa a admiração que lhe tem, ali parado na transição para a bonança depois da tempestade. inesquecido por pontos de fuga e perspectivas luminosas, baixa a rouquidão de homem como se domasse o tom das palavras de seda que acabara de dizer. pela menina pequena e grande. pela mulher em que esbarra, e num instante, baixa e levanta a cabeça. tem uma feição desassombrada e simbólica: sem hesitações, o soco é uma interrogação quando questionado “se já tinha visto alguém como tal”. aguardo brevemente o repto quando uma nuvem passa para mostrar que o mundo é um fio de água sem interregnos. respondo que nunca vi nada assim. ainda com a vontade de me explicar que não poderia. ele apartou-se e não reparei. ela fez o mesmo e dei-me conta de que a cidade flutua naquele perfil que mostra o quanto vale uma aparição. chove timidamente, de novo, e agora quem fica a ver a noite ganhar asas sou eu. a tarde inaugura a eternidade, o nocturno. guardo o que disse e não neguei. e ao voltar, no regresso, deixo-me atingir por uma mão que me guia. um membro que não precisa de ser notado para se denotar. percebo, enfim, que o amor absoluto tanto existe na extinção da sombra como no espreguiçar de um fogo felino. o amor puro inviabiliza a negação, aceita-se e enjeita-se no revés das feridas. madrugada dentro, um poema para uso doméstico cobre o silêncio, a paz e a aurora cheia de graça. para o que há-de vir - era uma vez uma menina e um menino. a escreverem sílabas com letras, de rosas jasmim e de alecrim. ainda a primavera, ainda a chegada e a partida. ainda a casa, sempre.

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