quinta-feira, 20 de maio de 2010

Adagio presente (ou o allegro ausente)


os dias têm a textura das suas cordas. a vibração sobre cada nota. e são tons maiores e menores. na pauta extasiando-se sobre si mesma. seja de conforto de náusea até de lembrança. às vezes parece esquecer-se. para não lembrar. mas é puro o disfarce a quem sempre regressa. emergente. na urgência porém. um ponto de pequenos círculos. com o polegar fixo. o braço solto. a harmonia dos dedos num cuidadoso abraço sobre ela. durante um intervalo sem duração. nem tempo. ele fecha-se nesse som percutido em dó. porque tudo começa do início. há também ré mi sustenidos num abafar de fá e de sol. ou lá si em timbres abertos e outra vez dó. porque tudo termina perto do fim. devagar. ele toca. o acorde morrendo-lhe através do eco. antes e depois de preenchido o vazio entre dois actos. de olhos fechados é quase f e l i z. nos dias que por ele passam devolvendo-lhe a forma como vive. o que foi e aquilo que viveu. pára por momentos. ressente-se. depois repete o ciclo. pois que há amores que duram uma idade inteira. enquanto ele pousa ao longe os pequenos preciosismos do que vê. pois que existem paixões assim. de tão grandes e desmedidas. afina os pormenores últimos da imagem que carrega nesse solfejo interior. todos os dias. faz uma breve pausa. respira. e sozinho recomeça a tocar.


domingo, 9 de maio de 2010

relâmpago (ou a sombra branca do amor)



um homem e uma mulher. um sofá e uma cadeira. ele está deitado enquanto ela se vai baloiçando num compasso crescente. trocam olhares. mas nem ele nem ela se vêem. trocam palavras. mas nem um nem outro conseguem manter a conversa. não trocam gestos. e nenhum dos dois se consegue tocar. porque a distância é aquilo que lhes sobra da solidão dos corpos. às vezes trocam de lugares. ele sentado e imóvel. ela deitada e distante. porque o horizonte é apenas uma imagem só ao alcance da distância que os mantém ali. por que razão. é longa a busca de um que procura através do outro o que os dois não encontram. ouvem-se perguntas. e ecoam-se dúvidas. falham as certezas. vence o silêncio. e as réplicas latentes do desgaste. do fracasso. são voltas e voltas. de volta ao começo. ele procura a chave. ela não encontra saída. ou vice-versa. estão ambos perdidos. às cegas. mais tarde ou mais cedo um deles cairá. entre tanto. há um pano que flutua até ao chão. com ela. e luzes que se apagam. com ele. na sala de estar o sofá vazio e a cadeira esquecida. enquanto a noite lhes devolve as violentas colisões do pensamento. agora uma cama num espaço fechado. e duas cabeças naufragadas. um homem e uma mulher acordados. até que um deles cai à beira da cama. um segura e agarra a mão do outro. é noite escura. entretanto. sem pensar agora por que razão. num sonho. de tão cansados adormecem. ele vira-se para o lado dela. ela respira como se sorrisse. de mãos dadas contam o tempo pela soma de todas as verdades e não para tornar mais verdadeiro o que às vezes já é demasiado real. a meio do sono reencontram-se. ao irromper do crepúsculo perderão o medo. sem mais nada. a dois. para sempre.