quinta-feira, 31 de julho de 2008

Intrelude


Quando se devia ter dito algo mais
as palavras fecharam-se dentro da boca
em nome do medo e do sonho desfeito
em que o silêncio pesava e rasgava
todas as frases construídas a sós
nesse retrato de solidões
nómadas que iam para lá e ainda além
numa troca emocional escondida e cega

Quando se tinha a vida e o tempo fugia
sem que se desse conta do relógio
a contas atrasar-se cada vez tanto
na direcção oposta
aos ponteiros que delicadamente
se recompunham no seu lugar
ainda que nenhum lugar
fosse capaz de suster o ímpeto
a força e a urgência
das partidas de amor inocente e
paixão ópio crente que
sugava os dias distantes às noites
próximas à manhã por acaso

Quando se envergaram armas
nessa luta desleal de paz
a memória esquecia gestos
no fenómeno quente do sono
frio no seu revés de tangente
que separava à força tudo como se
quem desaguasse por obrigação
nos choros amargos do
que não se dizia nem foi dito
ou do que não foi feito
por medo quase nem existiu

Quando o fracasso caíra
em tiras de papel pelos dedos
no quarto escuro da alma
voava uma revolta terminal
e gemidos tristes e baixos
outrora sorrir parado
em frente à lente da câmara
lenta de afectos quando
cada palavra pertencia à sua estação
de destino já traçado a
preto no branco como
vestígios pequenos de olhos abertos
aquando o silêncio haveria
de ter sido morto e enterrado

comigo
.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Amor em dez actos ou em (dez)encontros de Amor


1.Ela não a dizia, não a pronunciava. Ela não gostava do seu significado nem sabia do seu sentido. Ela conheceu-o quando um dia, à beira de Mazurka entrecruzou o seu campo visual com a atenção dele. Trocaram de papéis, enquanto ela observava cada pormenor parecia que ele lhe tocava em uníssono os seus cinco sentidos. À primeira vista, ela pensou que seria um fracasso. “Não me vou apaixonar. Recuso-me a ceder perante o que não acredito”.

2.Ele procurou-a no final. Abriu portas e atravessou corredores. Perguntou a quem passava se a conheciam. Houve quem não respondesse, houve quem sorrisse sem saber. De todas, uma conclusão apenas: desconhecida e invisível. Quem seria? Suspirou.

3.Entretanto, no meio da sala vazia, um ângulo de noventa graus refazia no palco uma imagem, equivalente à área de incisão da própria luz projectada. Como se ao espelho, ela se visse esbatida e desfocada, ligeiramente. Ela queria saber quem era ele ainda que o reprimisse. E o recusasse quase escrupulosamente. “Desaparece daqui” – Pensou. Desceu os degraus apressadamente e encaminhou-se para a saída.

4.À entrada do teatro, ele permanecia de pé. Não se sentia preparado para ir embora. Não sabia que razão o mantinha ali. Calado, seguia a trajectória das luzes móveis que contrapunham o seu pensamento. Algo lhe dizia que a preservação das espécies é que compõe a continuidade das gerações – estranhou tal inesperado conflito interior, um dois minutos. Afastou qualquer hipótese de raciocínio, de seguida. Acalmou a súbita ilusão de a reencontrar e num instinto, virou a rua à direita e começou a andar.

5.O maior mistério é o mistério em si. Ela transpondo o último degrau em terra firme. Dirige-se para o exterior sem que dúvidas houvessem. Nem do que aconteceu nem do poderia ter acontecido. Mas aconteceu alguma coisa? – Recusava-se a acreditar. Retirava dos ombros o peso de uma aproximação que não desejava, de um desejo que a arrasaria outra vez. Não. E no entanto, o verbo querer em que a revelação é a primeira chama. De braço erguido ao céu tenta chamar um táxi. No barulho das cidades o silêncio é a melhor forma de nos fazermos ouvir, mas o homem não repara à medida que ela lhe acompanha o movimento. É neste instante de perda que ela o reconhece, a ele, na roupa que leva vestido. Ao longe. Surpreende-se com a fiabilidade com que o seu corpo se dirige para ele num impulso autónomo e sem esclarecimento. “Espera!”.

É Inverno.

6.Sentados frente a frente olham-se e descobrem-se. A um e outro. Ela vai tentando fugir das perguntas dele. Ele vai tentando dar-lhe todas as respostas que ela nunca ouvira. Ou preferira não saber. «Porque tens tanto medo?» pergunta dele. «O mais importante é cada coisa sem a sua cedência e rendição» responde-lhe ela. E ficam a olhar-se sem que mais nenhuma palavra os destape, ou melhor, aquela palavra que ela não há-de proferir – os encubra dentro de si mesmos.

7.Pela rua, vão remediando o caminho num atraso de frases soltas e flagrante disponibilidade. Ela esforça-se pelo incómodo que o sentimento por ele lhe transmite. Ele, apercebe-se que uma mulher que demonstre sofrer, é mais do que um mundo ao qual ele poderá ou não pertencer. A decisão estava nas mãos dela. Ele tenta abraçá-la. Ineficaz. A noite cai-lhes entre os braços enquanto se afastam e separam. Até quando?

É Inverno. Quando faz frio na velhice dos dias.

8.Encostados a um prédio alto falam sobre os precipícios da vida. Das suas vidas e existências de hoje. Ela «e a coragem que tenho para me negar ao Homem», ele «e a sorte que não tenho com Mulher alguma». Um momento. Param. E observam-se mutuamente como já antes fizeram. Seguram a vertigem partilhada nos olhares que detêm. Ela, mais frágil. Ele, inquietantemente inseguro. O que é o Amor? O que é o Amor? Olhos nos olhos.

9.«Não poderei dizer que te amo» diz-lhe ela. Nunca? «Acaso eu não quisesse que o pudesses dizer, o que dirias?» questiona-lhe ele. Nada.

10.O céu fecha-se sobre o mar. O mar adormece no azul-escuro do céu. A fragrância suburbana é um sopro de gotas fundas que passam de um e de outro como quem viaja na intenção do regresso. Mas, qual deles se abandonará primeiro? A suspeita do coração no lugar da boca, dela. A certeza do vazio a aumentar. Ele. A dúvida. E por ela, o afogamento. Adensa-se a despedida. E não resta nenhuma sensação de alívio. Sem se tocarem, o prelúdio de cada um dos seus fantasmas é uma alucinação pela qual lutariam, houvesse tempo. Ou se o mundo não fosse mudo.

É Inverno.

(Ao fundo, escuta-se Chopin no limite da madrugada. No limiar da Primavera).